Gilberto Freyre e o mito da democracia racial

"Freyre foi um dos responsáveis pelo estudo antropológico das práticas culturais afro- brasileiras na matriz da identidade nacional emergente. Este intelectual criou os primeiros centros e institutos de estudo afro-brasileiros na década de 1940. O que se enfocava nesse pensamento era a exaltação paternalista e funcionalista da cultura afro-brasileira, bem como de seus usos mais radicais gerando “o reconhecimento de que o Brasil tanto era uma nação africana quanto um país do Novo Mundo e das escavações genealógicas correlatas das origens ou ‘essências’ dos africanos no Novo Mundo” (HANCHARD, 2001, p. 122).

A produção acadêmica dessa época tornou-se a base do estudo das culturas e povos africanos no Brasil. A esta forma de estudo denominou-se culturalismo, sendo definido como a equação entre as práticas culturais e os componentes materiais, expressivos e artefatuais da produção cultural em detrimento aos aspectos normativos e políticos do processo cultural. Neste enfoque, as práticas culturais funcionam como fins em si e não como possibilidades para atividades ético-políticas. Os símbolos e artefatos afro-brasileiros são reificados e transformados em mercadorias, ou seja, a cultura transformada em coisa, e não em processo político.

Telles (2003) considera que Gilberto Freyre foi responsável pela criação e de senvolvimento do mito da democracia racial enquanto constructo ideológico das elites escravocratas e republicanas. A formação de uma ideologia da excepcionalidade racial tornou-se pré-requisito para a compreensão mais ampla da política racial no Brasil. Para Freyre e seus seguidores, a desigualdade racial existente era fruto da escravidão dos negros e previa seu desaparecimento em pouco tempo. O pilar de sustentação de seu argumento era solidificado pela idéia da miscigenação, sendo essa um aspecto positivo das relações raciais no país. A mistura racial, miscigenação ou mestiçagem (termo derivado do espanhol mestizaje) equivale à mistura racial, como informa Telles (2003, p. 2) e constitui a viga mestra da ideologia racial brasileira.

Gilberto Freyre em sua publicação “Casa Grande Senzala” (TELLES, 2003, p. 50), transformou o conceito de miscigenação, tornando-o uma característica nacional positiva e símbolo da cultura brasileira, como indica Telles, sob a influência de seu mentor, o antropólogo anti-racista Franz Boas, que havia proposto que as diferenças raciais estavam em níveis culturais e sociais e não biológicos. Freyre apresentou uma eficiente ideologia nacional, popularizando a idéia da democracia racial que dominou o pensamento sobre raça dos anos 1930 até o começo dos anos 1990. Pa ra Telles, Freyre transformou a fusão dos povos em um aspecto central do nacionalismo brasileiro, dando-lhe caráter científico, literário e cultural.

Ortiz (2003, p.21) também comenta que a mestiçagem representava mais que uma realidade concreta, esta também viabilizava a expressão de uma necessidade social. A mestiçagem, moral e étnica, possibilitaria a “aclimação” da civilização européia nos trópicos. A mestiçagem toma sentido real e simbólico conferindo uma amálgama étnica que transcorre no Brasil. O mestiço, enquanto produto do cruzamento das raças, encerra os ditos defeitos transmitidos pela herança biológica. Como escreve Telles (2003, p. 21), “a mestiçagem simbólica traduz, assim, a realidade inferiorizada do elemento mestiço concreto”.

A crítica gerada por meio do pensamento de Telles (2003) instala-se na contradição com que a idéia de mestiçagem é tratada; para Freyre, ela perpassa a noção de inclusão social; no entanto, em termos práticos, ela perpetua a situação de exclusão vivida pelo negro na sociedade brasileira. Isso se deve ao fato de que a exclusão refere-se à falta de integração social que se manifesta por meio de regras que limitam o acesso de grupos específicos aos recursos e direitos de cidadania. Essa pode ser apropriada para descrever a realidade da sociedade brasileira pois um terço dos brasileiros vive na pobreza, como cita o autor em questão, uma vez que os pobres são, em percentuais desproporcionalmente altos, majoritariamente negros, assim a exclusão é a antítese da miscigenação (2003, p. 2).

O conceito de democracia racial obteve seu ápice no período militar, quando foi adotado como dogma entre 1964-1985, especialmente entre 1967 e 1974, o qual havia sido amplamente compreendido. Foi em 1962 que Gilberto Freyre se autoproclamou defensor do patriotismo brasileiro e empregou pela primeira vez o termo democracia racial como explicita Telles (2003). Vale dizer que qualquer contestação a essa idéia seria considerada uma menção de racismo e um peso à segurança nacional. Como crítica, Telles comenta que Freyre reduziu a sociedade brasileira à família patriarcal nordestina, a qual ele descreve como sendo o berço da civilização e onde a miscigenação assume maior expressão.

O vácuo deixado pela existência do mito da democracia racial em nosso cenário desestimulou a formação de uma consciência étnica ou racial. Tal fato privou a existência de qualquer programa afirmativo de ação dos não-brancos, ridicularizou ativistas e políticos do país que defendiam causas específicas da raça, e demarcou a falta de auto-estima demonstrada pelos negros e ligada à negação de sua identidade.

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É isso!

Fonte:
ANA PAULA RIBEIRO BASTOS ARBACHE: “A POLÍTICA DE COTAS RACIAIS NA UNIVERSIDADE PÚBLICA BRASILEIRA: UM DESAFIO ÉTICO”. (Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Doutora em Educação – Currículo sob a orientação do Professor Doutor Alípio Márcio Dias Casali). PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO. São Paulo, 2006.

Nota:
O título e a imagem inseridos no textos não se incluem na referida tese.

4 comentários:

  1. Muito bom, didático e completo.

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  2. Penso que falta a inclusão das referêcias bibliográficas utilizadas na tese citada.
    Seria enriquecedor para quem quizer aprofundar a pesquisa.
    Isso é apenas uma sugestão.
    O artigo é muito bom, como o conteúdo geral do blog.
    Abraço !

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  3. Caro Nicodemos,

    As referencias de que faz mencao a autora poderão ser consultadas na propria obra, que está disponivel digitalmente na Internet.

    Abracos, Iba Mendes

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  4. Freyre ao fazer do Nordeste o seu laboratório para explicar o Brasil desagrada o Sul/Suseste. Uma obra como Casa Grande e Senzala só podia provir do Sul Maravilhoso.

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