Os "outros": judeus, mouros, feiticeiros e supersticiosos

"Na Idade Média, a propagação de epidemias não se devia somente ao acaso ou a uma resposta da divindade ao pecado humano, mas causada por um grupo religioso que era tolerado e, ao mesmo tempo, visto com desconfiança pelos portugueses daquela época: os judeus. Este grupo era considerado perigoso para a ordem social, pois era responsabilizado pela infidelidade religiosa, pela prática da usura e pela proximidade com o Demônio.

De uma maneira geral, os ofícios suscitados pelo desenvolvimento das trocas, que supõem a manipulação corruptora do dinheiro, inspiravam desconfiança e reprovação, como guardas aduaneiros, cambistas e principalmente os comerciantes, ditos usurários, que, pelo discurso da Igreja, eram negados porque faziam uso da especulação, colocando à venda o tempo que pertence a Deus. Existiam, ainda, os que só vendiam palavras e saber, os advogados e os “intelectuais”, não sendo os últimos ligados às escolas monásticas e que viviam à custa das gratificações de seus alunos. Acusados por motivos semelhantes aos usurários, venda da ciência, algo que é de Deus, esses mestres eram marginalizados também pelo espaço destinado a lecionar, que por vezes se dava em cima das pontes.

Sendo de uma religião e grupo distintos, os judeus eram recusados por não serem culturalmente semelhantes, haja vista que se alimentavam de uma comida diferente, praticavam serviços religiosos distintos, educavam suas crianças separadamente e tinham autonomia administrativa, fiscal e judicial. As atitudes tradicionais e costumeiras dos judeus eram, portanto, vistas com suspeita. Práticas judaicas, como as de lavar as mãos depois de voltarem dos cemitérios, de jogar um punhado de terra atrás de si depois do funeral, o ritual de purificar fornos em preparação para a Páscoa judaica, eram vistas como magia.

Os judeus eram também conhecidos como médicos, e como tais eram temidos. O envenenamento era uma acusação que pesava, frequentemente, sobre os médicos judeus. Não somente os médicos, mas feiticeiras e judeus, de um modo geral, eram acusados de serem adeptos do uso de veneno. O envenenamento, crime considerado moralmente detestável, associado ao malefício, consistia num gesto de homicídio sem violência nem efusão de sangue, com o qual a vítima não tinha como se defender, por estar num estado de vulnerabilidade. Devido à forma de se matar, o envenenamento era abominável por ser enganoso e secreto, do tipo premeditado.

Assim, as disputas econômicas com comerciantes e artesãos cristãos, a prática da usura e a questão religiosa fizeram dos judeus um grupo ímpar. Com o objetivo de denunciar os que eram judeus e diferenciá-los dos cristãos, obrigou-se, por força de lei, o uso de vestuário específico que proporcionasse uma identificação imediata destes. Tal regra foi instituída, posto que chegou ao conhecimento de D. Afonso V “[...] que alguũs Mouros, e Judeus se vestem em avitos Christaãos, nomeando-se por Christaãos, e conversando com elles, nom seendo conhecidos por aquelles, que verdadeiramente som; e esto fazem por averem aazo de peccar com alguãs Christaãs, e fazerem mais ligeiramente alguũs outros malefícios na Christandade [...] ”.

O regramento do vestuário foi novamente colocado em pauta quando, em 1481-1482, D. João II foi solicitado a ratificar e impor uma legislação segregacionista no que respeitava ao luxo do trajar dos judeus, vez que foram denunciados por se comportarem como cavaleiros, fazendo uso de sedas e espadas douradas. Em sua resposta aos procuradores, o rei determinava aos judeus a interdição quanto ao uso de lobas, capuzes finos e gibões de seda, devendo estes “[...] usar vestido fechado com a estrela em cima da boca do estômago e os mouros deviam trazer o seu vestuário tradicional, sendo-lhos proibido o porte do capuz aberto à frente, exceto se no ombro trouxessem aplicada uma lua vermelha”. Para tanto, percebe-se que a distinção imposta pelas vestes pode configurar-se numa das estratégias de conservação social que permitiam a certos grupos a prerrogativa de portar certos tipos de roupa e/ou acessórios.

Não foram somente os judeus que sofreram as consequências do estigma do infiel; os mouros, apesar de também serem religiosamente bem tolerados, existiam à margem da cristandade, embora vivessem dentro dela. Ambos eram reconhecidos como um corpo estranho para a sociedade cristã, distintos pela religião, tradição e história. No entanto, “[...] a segregação social só tardiamente entraria na realidade quotidiana portuguesa [...]”. Do mesmo modo que os judeus, houve necessidade de dar força de lei ao regramento dos trajes dos mouros, por parte do poder régio. Exemplo disso foi quando representantes dos mouros de Lisboa apresentaram a Afonso V uma carta de D. Duarte, datada de 22 de novembro de 1436, na qual este rei informava ter recebido a seguinte reclamação dos mouros que habitavam a cidade lisboeta:

[...] o Alcaide Pequeno teria proibido que vestissem albernozes, ameaçando mandar prender os que fossem encontrados com o traje. Como se tratasse de vestimenta tradicional, permitida por cartas e privilégios reais anteriores, a medida constituía agravo aos direitos dos mouros, motivo pelo qual D. Duarte atendeu à petição que lhe fora encaminhada, confirmando a legalidade do vestuário em causa. Afonso V, por sua vez, ratificou os termos da carta expedida pelo antecessor, transformando-a em lei e complementando-a com normas relativas às peças do vestuário mouro válidas para todas as populações muçulmanas do reino.

Todavia, se por um lado judeus e mouros, que não seguiam o padrão religioso defendido pelo cristianismo, eram marginalizados, por outro eles próprios recusavam e desenvolviam um processo de exclusão em relação queles que “[...] não aceitavam a Torah ou o Corão. No caso das minorias, a exclusão é entendida como defensora da sua própria individualidade e sobrevivência como corpo social e religioso. Assim, o contato íntimo entre indivíduos de credos diferentes era visto negativamente, quer pela maioria, quer pelas minorias [...]”.

Os limites impostos aos judeus e mouros iam além do ideológico, pois era determinado a eles um espaço dentro dos concelhos para residirem: as judiarias e as mourarias, arruamentos com portas que eram abertas ao nascer do sol e fechadas ao entardecer. “Tentava-se desta maneira evitar a apostasia dos espíritos cristãos mais fracos,assim como a convivência íntima de sexo diferente, proibida pelo direito canônico e civil 614”. Ao descrever a cidade de Lisboa, Damião de Góis com detalhes observou o trajeto até chegar mouraria. Assim, “[...] passando a leprosaria e a feira do gado, chega-se a outro vale, [...] a que chamam de Mouraria, porque, depois da cidade ter sido tomada aos sarracenos, foi-lhes permitido viverem ali”. Verifica-se por suas palavras que o caminho até a chegada do locus dos mouros era um espaço marginal.

No interior do reino português, tanto judeus quanto mouros eram propriedade do soberano, não por serem seus servos, mas porque dependiam do rei para sua permanência no reino. Era o rei o responsável pela concessão de cartas de privilégio ou de foral, com a outorga de liberdades, usos e costumes que poderiam gozar no reino, como a “[...] possibilidade de elegerem seus magistrados; de viverem livremente a sua religião, erguendo as suas sinagogas ou as suas mesquitas; ensinarem nas suas escolas o hebraico ou o árabe, [...] possuírem os seus letrados e capelães; regerem-se pelo seu direito [...]”, entre outras questões. Por estarem no território português, eram submetidos à cobrança de tributos, contudo, possuíam incapacidade jurídica por não poderem testemunhar contra um cristão, a menos que fosse corroborada por outro cristão. Assim, as regras jurídicas a eles concernentes encontravam-se de modo separado nas Ordenações Afonsinas, sendo as leis que os normatizavam inseridas no Livro II, por meio de um estatuto.

Nota-se, porém, que, em termos de heterodoxia da fé, era a feitiçaria e seus aspectos mágicos que mereceu mais destaque entre as minorias religiosas para a realidade de Portugal na Idade Média. Isso porque, desejando os reis portugueses expressarem a ideia de que vivenciavam exemplarmente o cristianismo, deviam afastar do reino as antigas práticas religiosas associadas a um pretérito pré-cristão. Contudo, a força dos costumes manteve essa experiência, ainda que assumisse certas vezes uma roupagem cristã, revelando-se no cotidiano religioso e social português medieval.

O recurso à magia e aos seus praticantes esteve presente em, praticamente, todas as sociedades ao longo de sua história, ainda que a feitiçaria assumisse constantemente um aspecto marginal, opondo-se à religião oficial, aos ritos públicos aprovados, dos grupos em que esta se apresentava. O receio e a intranquilidade sentida pelas estruturas de poder estabelecidas deviam-se ao fato da feitiçaria ser percebida como ameaçadora e responsável pela subversão da ordem e concorrência do sagrado.

Toda e qualquer religião comporta, em maior ou menor grau, práticas de magia, na medida em que executa ritos simpáticos, divinatórios, purificatórios ou de transmutação, os quais têm como denominador comum o fato de serem criadores, de intervirem na realidade com o intuito de produzir nela uma alteração. Toda prática mágica se estrutura a partir de um conjunto estabelecido de crenças que integram um determinado sistema religioso. Contudo, o fato de a magia ser um aspecto pertinente ao âmbito religioso, não significa que tenha sido recepcionada, interpretada e praticada da mesma maneira por todas as crenças.

A oferta religiosa em Portugal era dominada, tradicionalmente, pela Igreja Católica, que oferecia como proposta a salvação depois da morte, contrastando com a proposta mágica de salvação imediata neste mundo, que fazia fama numa época de carências e necessidades, tanto espirituais quanto terrenas urgentes. Diante disso, o homem medieval buscava o auxílio de agentes religiosos, fosse um representante da Igreja, fosse um feiticeiro, apesar das atividades que envolviam este último terem sido condenadas pelos poderes instituídos.

Em Portugal, observava-se a existência de um ambiente favorável à permanência de crenças, ritos e elementos supersticiosos, principalmente em populações supostamente cristãs onde as tradições pagãs persistiam, posto que o nível de reflexão religiosa nem sempre estava em sintonia com o nível de divulgação entre os indivíduos. A perpetuação de antigas crenças mágicas e supersticiosas no espaço e no tempo pelos portugueses devia-se à força da tradição. Assim, a percepção régia acerca das práticas realizadas no reino fez com que D. Duarte tecesse algumas considerações sobre as superstições observadas em sua época, destacando:

[...]
a crença aas profecias, vysões, sonhos, dar aa vontade, virtude das palavras, pedras e ervas, sygnaaes nos ceeos, e porque se fazem na terra em pessoas e alimárias, e terremotos, graças especiaes que Deus outorga que ajam algumas pessoas, a astrologia, nygromancia, geomancia, modo de trejeitar por soliteza demaãos ou natural maneira nam costumada.

Essa experiência mágica e supersticiosa arraigou-se no mental coletivo
, associada à convivência com, principalmente, as culturas árabes e judaicas. Tal realidade caracterizou o português do século XV como sendo “[...] fragueiro, abstemio, de imaginação ardente, propenso ao mysticismo. O carater independente, não constrangido pela disciplina, ou contrafeito pela convenção”.

Por ser uma prática considerada ilícita tanto para a esfera espiritual quanto para a temporal, seja pela concorrência religiosa, seja pela desordem que esta causava a um reino cristão, a feitiçaria foi uma atividade que esteve num limiar tênue no medievo português, oscilando entre a tolerância e a necessidade de erradicação de comportamentos contrários a moral que o reino propunha disseminar. Apesar de excluir e negar os agentes associados aos atos mágicos não cristãos, a “[...] sociedade medieval tem necessidade destes parias [...] uma vez que [...] projeta e fixa magicamente neles todos os males que de si afasta
”.

A insuficiência dos serviços médicos ortodoxos deixava uma grande parcela da população na dependência da medicina popular
tradicional, que tinha como ícone a feiticeira, terapeuta de males físicos e sociais. Ao passo que alguns procuravam seus serviços, contraditoriamente, também condenavam suas práticas. Desta maneira, esta contradição da sociedade medieval entre a necessidade e proibi ão da feitiçaria “[...] se dava devido ao seu monopólio dos poderes de cura – os duplos poderes de curar e ferir em virtude da desconfiança medieval com respeito à medicina – sendo assim solicitada ou perseguida, ao sabor das necessidades”.

A prática da feitiçaria constitui-se, essencialmente, uma prática individual, e de caráter urbano, local privilegiado onde os problemas humanos, os ódios, as paixões, avolumam-se e ganham densidade, reclamando a presença de um intermediário no qual depositam as suas esperanças e desejos. É no meio urbano que se encontra a possibilidade do encontro da mescla de desigualdades materiais e mentais, criando novas necessidades e desejos nas consciências dos indivíduos e que justificam a necessidade da feiticeira
.

A ideia da feiticeira e de seus feitiços, possuidora de “poderes benéficos” (curar, proteger, adivinhar) e “poderes maléficos” (provocar doença, morte, estranhos efeitos, modificar sentimentos e comportamentos)
, era largamente difundida nos campos e nas cidades. Todavia, a feitiçaria em Portugal era mais associada à magia amatória, erótica, embora seu campo de atuação extravase o âmbito estreito da sexualidade, para abranger as aspirações de casamento e os múltiplos problemas da relação de casal. Enfim, recorria-se às profissionais de tal arte para que pudessem atuar com intermediárias de casos amorosos.

A expansão portuguesa e as necessidades de guerra estimularam uma intensa corrente emigratória e agitaram os fluxos migratórios internos – que se refletiam no crescimento urbano
– gerando um excedente feminino e uma forte desorganização familiar. Além disso, a expansão teve certo efeito multiplicador, tanto no aspecto econômico como no social. Novos mercados, novas fontes de rendimento, novas possibilidades de carreira militar e administrativa.

Nessa conjuntura favorável à promoção dos homens, a situação das mulheres jovens tornou-se mais precária e dependente, agravando-se a concorrência no seio desse grupo etário. A par disso, as mulheres adultas conheciam situações variáveis, que iam, desde um hipotético reforço do poder social das viúvas aristocráticas e proprietárias, até a perda de posição de outras viúvas cujos maridos viviam do rendimento do trabalho.

O receio das mulheres de perderem o afeto de seus maridos, o que sucedia com certa frequência na Baixa Idade Média, levavam-nas muitas vezes a recorrerem à utilização de feitiços para que a reconciliação marital acontecesse. Desta maneira, algumas mulheres, e eventualmente também alguns homens, por si mesmas, realizavam encantamentos, fosse por conhecimentos outrora apreendidos, fosse por ensinamentos adquiridos. Ou, ainda, solicitavam o auxílio de uma feiticeira que lhes serviriam de mediadora em questões afetivas, ou em qualquer outra matéria.

Dentre os pedidos mais recorrentes daqueles que buscavam o intermédio mágico para suas aflições, cite-se, segundo o historiador português José Pedro Paiva: provocar paixão, dominar ou amansar um amor excessivo, ajustar casamentos, dissimular uma relação ilegítima, evitar comportamentos violentos dos maridos sobre as esposas, forçar maridos que abandonavam os lares a regressarem, atrair homens, limitar as capacidades sexuais dos homens que, não correspondendo ao amor desejado, se sentiam atraídos por outras mulheres, entre outros
. Para tanto, fazia-se uso frequente de filtros para induzir ao desejo nos feitiços de amor.

Desde sua origem, a Igreja olhava com desconfiança para o amor, salvo quando se tratava de caridade
. Quando o amor projetava-se para o alto, para o espiritual, para Deus, era denominado caritas. Ou então para baixo, para as coisas terrenas, era denominado cupiditas. O amor terreno permissivo era consolidado pelo casamento. Todavia, por ser este pertencente às coisas da terra, logo passíveis ao erro e ao engano, podia ser gerador do pecado da luxúria, tão associado à feitiçaria. Portanto, o amor, uma vez conquistado, deveria ser conservado e não atiçado.

A feiticeira atuava como agilizadora e ao mesmo tempo conservadora das estruturas
sociais e familiares em que operava. Esta, tida como assassina, destruidora de matrimônios, procuradora de abortos, infanticida, criadora de adultérios, evitava ao mesmo tempo as crises domésticas e interfamiliares ocultando suas possíveis causas, eliminava a possível estruturação das vinganças rituais e "salvava" nas situações desesperadas. Vendendo ilusões, a feiticeira aliviava a quantos acudiam a ela levados pela ira, pelo rancor, pelo desespero. Por isso, no fundo, a questão social começava ali onde a feiticeira termina: ali onde o homem se descobre sozinho diante de seu destino.

De acordo com os praticantes de feitiçaria, a eficácia dos rituais mágicos era atribuída aos materiais utilizados, à escolha de locais qualificados
, à observância de horas, dias da semana e épocas do ano, simbolicamente valorizados, bem como à articulação entre os ritos manuais, os ritos orais, os quais remetem a um fundo mítico. Todavia, a eficácia da magia se assenta na crença num poder místico, sem o qual ela se torna pura técnica. Desta maneira, a eficácia depende de uma crença a priori: a magia “funciona” porque as pessoas creem.

Devido à percepção de práticas mágicas e supersticiosas foi que, em 1385, determinou-se na câmara da cidade de Lisboa um estatuto que tratava em seu conteúdo da obrigatoriedade de abolir da cidade os pecados, principalmente os de idolatria e costumes
dos gentios. De acordo com Fortunato de Almeida, o estatuto tinha por escopo “[...] proibir que de futuro na cidade e seu termo se façam invocações de demónios, feitiços, encantamentos, sortes, agouros e outras práticas semelhantes [...]”.

Segundo o referido documento, quando a pena para os casos citados não fosse contemplada pela lei, o degredo da cidade e seu termo deveriam ser aplicados como punição até perdão régio, castigando aquele que fizesse uso, ensinasse ou consentisse nas referidas práticas
. D. Duarte, no capítulo XXXVI de sua obra Leal conselheiro, tratou “Das outras virtudes e ciências a que dão fé por desvairadas maneiras”, advertiu que “[...] D´agoiros, sonhos, dar aa voontade, sinaes do ceeo e da terra, algũu boo homẽe nom deve fazer conta, porque se nom pode bem entender quando é per natural demonstraçom de Nosso Senhor, tentaçom do imigo ou natural preciencia ou que vêem per símprez acontecimento, per mudan a da compreissom, ou falas passadas sem algũu significado [...]”. Isso porque o homem, segundo o rei, não tinha discernimento para diferenciar os sinais do sagrado e do profano.

[...] porque as obras da feitiçaria e que se dizem de Catelonha e Saboia, eu lhes dou pouca fe, nem aaquelas que muitos afirmam em estes reinos, porque o mais de todo hei por engano e bulrra. Sobr´estas obras de feitiços. Muitos caem em grandes pecados e se leixam com grande mal e desonra continuar em eles, por lhes dar fe ou querendo mostrar que som for ados que amem algũas molheres, e vivam com elas contra conciencia e seu boo estado, dando em prova que nom se deve pensar que ũu tal homem, conhecendo tanto mal, se d´el nom guardasse nom seendo per feitiços vencido.[...] E, segundo meu conselho/, que em tal cair, com a ajuda de Nosso Senhor per seu esforço e saber e poder, filhando conselho de persoas virtuosas, se esforce e nom se cure de feitiçaria[...]
.

Com propósito semelhante, estabeleceu-se a interdição de práticas anteriores ao cristianismo e que passaram a ser postuladas como supersticiosas e gentílicas, a exemplo do lan amento de cal nas portas “[...] so tijollo de Jano [...]”, ou outra pr tica do g nero, e do canto de janeiras e maias
, ou alguma coisa semelhante, em qualquer mês do ano, sob pena de multa de cinquenta libras. Aquele que cedesse bestas, vestes, jóias, ou quaisquer apetrechos para as maias ou janeiras acabaria perdendo o que fora outrora emprestado. João Pedro Ribeiro observou a permanência do culto de janeiras e maias em território português até o século XIX, ainda que fossem proscritas. Diante dessa verificação, cumpre ressaltar que tal proibição não foi eficiente.

[...] na cidade do Porto [ainda festejava-se] as Janeiras, e no primeiro de maio enrama[va-se] as janellas com a flor de giesta amarella, que chamam mesmo maias, e nas aldeias não se faltou ao costume immemorial de as pôr nas cortes dos gados, nos linhares e nos nabaes, etc. É natural que não se faltasse ao mesmo costume immemorial, tambem na cidade de Lisboa, onde se fez o accordam, apparecendo os
Maios pequeninos [...] enfeitadas de flores do campo, e cercados de mais rapazaiada. É também de esperar que ainda se conserve junto a Coimbra a burlesca mascarada do imperador de Eiras, e até ainda a haverá em Lisboa na Lapa e na Esperança [...].

Outra prática gentílica negada pela doutrina cristã, mas que se perpetuou, foi o costume de carpir e clamar sobre os mortos. Com base nas informações contidas no Synodicum Hispanum, notoriamente sobre a cidade de Oviedo em 1450, eram expressamente proibidas manifestações de dor e pesar exacerbadas durante os funerais, vez que o desespero, assim manifestado, supunha falta de fé na Ressurreição e na vida eterna
. Apesar do interesse de se extirpar esse tipo de comportamento no reino, permanentes eram tais práticas entre os clérigos regulares e seculares. Neste sentido, por determinação régia, o hábito de carpir foi proibido em Portugal, ao ser anunciado legalmente que “[...] de ali por diante, na cidade e seu termo, nenhum homem ou mulher carpisse sobre qualquer defunto, ainda que fosse pai, mãe, filho ou filha, irmão ou irmã, marido ou mulher, nem por nenhuma outra perda ou morte; o que não obstava a que qualquer pudesse trazer luto e chorasse, se quisesse [...]”. Em caso de infra ão estipulava-se uma multa de cinquenta libras e, ainda, retinha-se o morto em casa durante oito dias.

Contudo, quem não tivesse meios para efetuar o pagamento, seria submetido ao degredo da cidade e seu termo até o perdão régio. Apesar da proibição legal do hábito de carpir, essa prática manifestou-se pela morte do príncipe D. Afonso em 12 de julho de 1491
, sendo revelado pelo cronista Garcia de Resende. Acrescente-se, ainda, que necessário se fazia investigar duas vezes no ano se na cidade e seu termo insistia-se na prática de tais costumes. Os juízes e vereadores de Évora, em 10 de outubro de 1386, a exemplo do que ocorrera em Lisboa:

[...] mandarom que daqui em diante nenhũa pessoa nom se carpa nem depene nem se rasgue no rosto nem dêem vozes nem gritos nem façam outros arroidos por os passados se de maao costume husou a chora, que porque se nom husa nem costuma em outros reinos e provencias salvo tam solamente em estes, nom lhes embargando nem tolhendo chorarem e fazerem calladamente só por si sem arrido por os dictos finados segundo se em outras terras faz
.

Ao passo que os reis portugueses do século XV empenhavam-se em combater manifestações de ordem mágica e supersticiosa, ao mesmo tempo cultivavam a presença de astrólogos em suas cortes
, aos quais consultavam. Ou melhor, as monarquias ibéricas faziam uso destes profissionais. Afonso X, nas Leis das Siete Partidas, tinha a astrologia como primeiro gênero de adivinhação, não a proibia, por ser uma das sete artes liberais, embora proibisse que a usassem aqueles que não a dominassem. Até mesmo os próprios papas deixavam transparecer suas crenças ao questionarem as estrelas.

Antes mesmo da Dinastia de Avis, a realeza portuguesa já tinha seus astrólogos oficiais, os quais consultava em todas as decisões difíceis. D. Afonso IV (1325-57), filho de D. Dinis, mantinha s bios em sua corte especializados em “Astrologia”. O infante D. Henrique do mesmo modo era muito dado ao estudo da “Astrologia”
, sendo ele “[...] muim arriscado caualleiro, era muim dado abo studo das letras, prinçipalmente da astrologia, e cosmographia, pera milhor exerçitar tam virtuosas artes [...]”.

Com Avis, o próprio D. João I, em seu Livro da Montaria, refere-se a Mestre João Gil, astrólogo aragonês, para expor seus conhecimentos sobre a criação divina do Universo, assim como o funcionamento do Cosmos
. Cite-se, ainda, Mestre Tomás, “grande letrado e muito profundo astrólogo”, que acompanhava o Prior da Ordem Militar de Avis. J D. Duarte tinha, junto a si, mestre Guedelha, que lhe aconselhava sempre que consultado, inclusive lhe prognosticando a morte. Em seu Livro dos Conselhos, o referido astrólogo proferiu a seguinte opinion a D. Duarte:

No mayor dia que he aos quinze dias de Junho / he o crepusculo da tarde duas oras e mais hũ pouco. Aos quinze dias de mar o he o crepusculo da tarde hũa ora e ter o e mais hũ pouco. E em meo Setembro outro tanto quasy. E o mais pequeno dia do ano he aos quinze dias de dezembro hũa ora e .3
.

D. Duarte preocupou-se, ainda, em remeter uma carta ao doutor Diogo Afonso a fim de conhecer as possibilidades quanto ao uso da astrologia. Em resposta e conclusão ao questionamento feito pelo referido rei ao citado doutor, observou-se o seguinte:

[...] que qualquer astrologo pode Julgar polas constelações todas as cousas naturaes que se per elas fazem asy como seca çhuyua/ Jnclinações d homens, açertos azos saude Jnfermidade // E tal Julgar como este he liçito e sem pecado se em ele reseruar o poderio de deus [...] que Julgar em quaesquer cousas que seJam e espeçialmente nas obras dos homens que tem liure arbitrio / execuçom neçesariamente ou detrimjnadamente que asy sera. he pecado / defeso pela Jgreja polas alegações sobre ditas [...] que qualquer que o pode fazer nos feitos grandes e de grande periguo deuja prouer per astronomja e per Juizo de tres entendidos ao menos sem saber hũ do outro, se achasse que concorrya em algũas cousas naquelas poer auysamento mayor que nas que hũ reduzise os outros crendo sempre e tendo que deus he poderoso sobre todo el uos garde sempre.//.

Tamanha era a busca pelos presságios obtidos pela observação dos astros em Portugal que, em 1513, a Universidade de Lisboa acabou por fundar a cadeira de Astrologia, lecionada pelo físico cristão-novo Tomás de Torres, sinalizando o lugar de prestígio que a astrologia continuava tendo diante dos reis e da nobreza, principalmente
. A priori seria a manipulação e consulta à astrologia uma conduta marginalizante por suas possíveis associações com a magia, mas, quando praticada pelas instituições, reveste-se de oficialidade e licitude. Não é colocada à margem, permanecendo no centro.

Algumas mulheres e homens, como feiticeiras e benzedeiros, praticavam essas atividades como meio de ganhar a vida, ainda que vistas com reservas, sendo procuradas pelos citadinos como forma de socorrer às suas aflições e desejos de amor e/ou de cura. Era, portanto, uma “necessidade indesejada” do cotidiano da sociedade urbana. Contudo, não eram os únicos ofícios que ocasionavam um sentimento de ambiguidade."


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Fonte:
BEATRIS DOS SANTOS GONÇALVES: “OS MARGINAIS E O REI: A construção de uma estratégica relação de poder em fins da Idade Média portuguesa” (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense como requisito para obtenção do grau de doutor. Área de Concentração: História Social. Setor Temático: História Antiga e Medieval. Orientadora: Profª. Doutora VÂNIA LEITE FRÓES). Niterói, 2010.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

Um comentário:

  1. muito interessante. serviu para me ajudar na leitura de outros livros.

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