Entre o Mito e a Literatura



“Buscar a origem de um mito parece um trabalho fadado ao insucesso. Não se trata de encontrar a origem do mito e sim de algo mais próximo do contrário, uma vez que o sentido ou a busca do mito é necessariamente pela origem ou, mais bem dito, não há mito, senão mito de origem.

Mitos envolvem a gênese de algo: do universo, das águas, do fogo, da terra, dos sexos, da culpa ou do próprio homem. Uma vez que podem versar sobre a origem do próprio humano, entre tantos outros fenômenos e substâncias que lhe são anteriores, não caberia ao homem a sua autoria. Os mitos dizem respeito às criações e peripécias divinas. Sendo da ordem do divino eles não requerem explicação não podem ser explicados pelos referentes humanos, cuja formulação de sentido exorbita o Real. “O mito é uma ‘janela para as sombras’, fresta para um além que sempre se esquiva, vidraça aberta para a noite, onde ressoa o riso dos deuses” (BRICOUT, 2001 p.17).

De tal modo, o mito mantém uma curiosa relação entre a ordem e o caos. Busca aproximar o caos de sentidos inalcançáveis pela razão dando-lhe certa ordem, mas preserva em si faltas e lacunas que denunciam, na organização dos sentidos, uma articulação subjetiva inerentemente necessária àquele que dele visa se aproximar. No mito, está a equivocidade do forjar, da qual aqui fazemos uso e com a qual encerrávamos o capitulo anterior. No mito, está o ferro malhado e formatado, marcado por um caráter uno, mas também o engano, o fabuloso, que aponta a união, o sentido e, ao mesmo tempo, a denúncia de um sem-sentido como produto da ficção. Produção, essa, em constante movimento a partir da apropriação errática de cada nova forja, de cada autor que visa a imprimir-lhe sua marca.

E estaria o Fausto elevado a essa categoria? Não seria antes uma lenda, uma personagem histórica ou talvez uma simples temática? O que se funda ou se origina com Fausto, se todo mito é de origem?

Propomos que Fausto se enquadraria, sim, nessa categoria de mito, uma vez que, enquanto nome-matéria-prima, serve para toda uma gama de criações de alegorias do drama humano diante da cultura, da nação, da produção de sua marca singular, da superação ou confrontação com seus limites. Além disso, o nome Fausto serve como receptáculo para a repetição de temas e personagens míticos que lhe são anteriores e lhe dão alicerce, além de inspirar a forja de “lendas biográficas”, que compõem constelações de personagens-guia de imaginários nacionais e universais. No que tange ao Fausto, eis sua singularidade, os elementos míticos ou mitológicos que lhe precedem se acoplam a uma personalidade histórica e dela fazem lenda, a ponto de não restar desse “histórico” senão o nome. A lenda vira folclore, marcando a repetição dos folguedos de farsas e jogos de marionetes, nas feiras públicas, para pouco a pouco se tornar tema de repetição de outra categoria: a literatura, como hoje a entendemos.

Se abrimos este capítulo apontando que o mito é sempre de origem, parece-nos que Fausto está na gênese do Homem, do humanismo. Ainda que sua primeira versão popular venha a lume pelas mãos de um editor vinculado à pregação religiosa, o tema que já ecoava em praça pública denuncia esta passagem de ênfase do divino para o humano, do medieval para o moderno, do teológico para o científico e as suas conseqüências no social. Nas repetições, denunciam-se o luto por um Deus, senão morto ao modo nietzscheano, moribundo e destituído do poder de outrora. O fascínio, nunca dissociado do medo, pelas maravilhas de um potencial humano inexplorado, por um lado, e a descrença no homem (charlatanismo, escroqueria) e em seu potencial científico, por outro, tornam-se questão em Fausto. Desacreditada do Deus, que se faz representar pela Igreja Romana, com suas corrupções e indulgências, e desconfiada de um saber mundano em construção (Alquimia, Astrologia, Medicina iatroquímica, renascimento do Helenismo), à sociedade que engendra Fausto só uma coisa é certa: a onipresença do espírito enganador.

É ele, ou a presença dele nos atos e aspirações humanas que está por trás deste mito que se desdobrará em literatura, fazer que tem também no engano ou no paradoxal o seu ponto de partida, mas com um modus operandi, assim pretendemos assinalar, diverso da tradição mítica. A passagem de um tema, do mito, enquanto tradição oral que encerra uma verdade, para a elaboração literária, que tem por princípio a ciência de uma Phantasie, faz da Literatura uma Ars Diaboli contraposta a Ars Magna do mito que exprime, conforme posto, o que é do divino, sendo o homem um mero e ineficiente veículo de sua difusão pela palavra. Na literatura, irrompe a ousadia prometeica de um autor que, por um instante, estanca o jorro oral da tradição mítica, apropriando-se dela para, dali, disso, fazer uma obra.

Para sintetizarmos as características do Mito e melhor compreendê-lo em extensão ou contraposição à Literatura, cabe apresentarmos uma síntese de como o concebe Mircea Eliade em seu Aspectos do Mito (apud BATISTA, 2003, p. 63-64):

1) Os mitos são histórias consideradas absolutamente verdadeiras (contrapostas às fábulas e ficções (num modo mais próximo ao literário moderno), no seio das sociedades nas quais o mito permanece vivo)
2) As histórias míticas falam dos Entes Sobrenaturais, seres fantásticos que com sua mágica intervenção puderam
3) Criar - o mundo ou qualquer outro algo - ou seja, tornar possível um vir a ser em um tempo próprio, das origens – O tempo primordial - sagrado e “apartado” do nosso tempo ordinário e profano;
4) As ações mágicas, nos tempos primevos, destes Entes Sobrenaturais têm um aspecto modelar para todas as atividades humanas, verdadeira conjuntura espiritual para as sociedades “primitivas”;
5) Conhecendo-se as origens das coisas, como elas foram constituídas pelos Entes Sobrenaturais, torna-se possível dominá-las e manipulá-las com os mais diferentes objetivos – por exemplo, fazer as plantas crescerem ou promover a cura de um enfermo – o que pode ser obtido pela
6) Rememoração das narrativas – com capital importância da memória -, vivendo- se o mito e tornando-se sagrado, capaz de, no contexto do ritual, tornar presente o Tempo Primordial e os Entes Sobrenaturais, mantendo-se contato com eles e vendo-os agir na formação das coisas; para este reviver mítico tem importância radical a
7) Palavra, cuja preeminência sobre a criação do mundo é inexorável, tanto no primo instante da geração – no qual a divindade e/ou o mundo podem ser o “objeto” de sua força criadora – quanto nas instâncias ritualísticas de recriação cósmica, levada a cabo pelos iniciados (pajés, xamãs e outros)

Há uma oposição clara de um mito enquanto tal, apresentado nas categorias acima dispostas, e o fazer literário a partir da modernidade. Fausto parece ser um exemplo patente disso em forma e tema.

Quanto à forma, temos a apropriação de algo que cabia ao divino pelo homem e a impressão nisto de uma autoria, ou da função-autor foucaultiana (FOUCAULT, 1969) da qual nos servimos; esta elaboração fica evidente a partir de uma característica fundamental da primeira aparição de uma obra escrita de um Fausto, a saber, O Volksbuch editado por Spies. A despeito da sua discutível qualidade literária, este livro se torna um best-seller que ultrapassa barreiras de línguas e fronteiras, é distinto dos demais que examinaremos pela ausência de uma autoria. Ponto de passagem, portanto, do mítico ao literário.

Reflexo do que traz o mítico em si ou uma nova morte do mito enquanto verdade divina? Assim como qualquer escritura sagrada, que não possui autor, salvo na qualidade de um repetidor-narrador, o livro de Spies pode esconder uma intencionalidade ao não ser assinado. Como Volksbuch (livro popular - livro do povo) torna-se mais verdadeiro no que anuncia, uma vez que se faz valer do dito vox populi, vox Dei. O Volksbuch, se é bem sucedido em sua popularidade e divulgação, parece ter um efeito colateral de disseminar o gérmen da autoria (tão contrária ao mito), que terá no inglês Marlowe sua primeira fecundação perene.

É o que essencialmente está no próprio mtema sobre o qual se passa a escrever. Se em Fausto temos os Entes Sobrenaturais, a relação não linear com o Tempo, e operação pela mágica da Palavra Sagrado-Profana (Sacer), cateforisa eliadianas, essas categorias deixam de ser exclusividade do divino ou de seus representantes (xamãs, pagés e sacerdotes) para serem apropriadas e manipuladas pelo Homem em seus anseios e em seu próprio nome e benefício (ou malefício). É nisso que apoiamos nossa tese de que o fáustico assinala a passagem do mítico como escritura divina e universal para o literário enquanto uma escritura autoral singular e subjetiva em sua gênese, mas social em sua base e em seus destinos.

A literatura autoral, nesse sentido, diferencia-se tanto da escritura sagrada quando da poética do aedo que canta os feitos dos deuses e heróis inspirado pela musa, e, portanto por algo da ordem do divino. É nisso que ela se manifesta herética, pela escolha (hairésis) de um autor, por um tema, um estilo (Elemento diabólico no entender do Mefisto de Valéry), os personagens e seus destinos. O que não quer dizer que este autor não se sirva, não se utilize da tradição mítica, muito pelo contrário. Mas o faz não como veículo divino e em nome do Outro, mas compreendendo esta tradição como uma produção ficcional que encerra verdades, as quais processa e articula em seu próprio nome. Ouvimos aqui nitidamente os ecos de nossa tese quanto à interpenetração de método (aproximação literatura e Psicanálise), tema (Fausto e o fáustico) e questão (Sinthome - o fazer em nome próprio a partir do legado) em nosso trabalho.

Mas eis a velha questão da oposição entre verdadeiro (’αληθής) X falso (ψευδής) no que tange ao mito e sua relação com qualquer possibilidade de ciência, no que vínhamos expondo. Questão que já se colocava na maiêutica socrática. Na busca de dar conta de uma verdade inexpressível pela demonstração empírica ou pelo recurso racional, mesmo o Sócrates platônico da República (acusado por Nietzsche de conter o élan criativo dos jovens atenienses com seu elogio da racionalidade e que bane os artistas das representações imagético-ludibriadoras), parece apontar o μûθος como o único ponto de partida possível para tratar do verdadeiro:

Sócrates – Não convém começarmos a sua educação pela música em lugar da ginástica?
Adimanto – Sem dúvida.
Sócrates – Tu admites que os discursos fazem parte da música ou não?
Adimanto – Admito.
Sócrates – E existem dois tipos de discursos, os verdadeiros e os falsos?
Adimanto – Sim, existem.
Sócrates – Ambos entrarão em nossa educação, ou começaremos pelos falsos?
Adimanto – Não estou entendendo.
Sócrates – Nós não começamos contando fábulas às crianças? Geralmente, são falsas embora encerrem algumas verdades. Utilizamos estas fábulas para a educação das crianças antes de levá-las ao ginásio.
Adimanto – É verdade. (A República – Livro II 376e-377a)

Ho, ho... Bem se vê que você me freqüentou. Esse estilo aí me parece bastante mefistofélico, Sr. Autor!... Em resumo, o estilo é o diabo!)

Há uma diferença clara no que tange à relação com o mito nas sociedades teocêntricas, que por ele se orientam, e a partir de um antropocentrismo, seja o clássico (socrático-platônico) ou o humanismo moderno que nasce junto com Fausto: nessas últimas, manifestam-se a ciência de sua falsidade e insistência em usá-la em prol da verdade como produção ou efeito e não como revelação direta e inequívoca. Algo bastante diverso da relação pré-humana com o mito nas sociedades onde ele é vivo.

Se o canto do aedo igualava o verdadeiro (‘αληθής), uma operação inaugura- se quando um homérico passa a gravar-escrever (o que em grego não se diferencia) isso, congelando-o no tempo e num espaço e a essa operação associando um nome. Se Platão o baniria, o poeta de sua República, talvez não tenha percebido o valor desta operação, que viria ecoar metonimicamente de autor em autor até encontrar nosso Joyce e sua Odisséia renomeada Ulysses. Quanto ao Fausto, a partir do Volksbuch anônimo, que congela e transporta a palavra que ecoava nas feiras, nas tavernas, nos sermões e nas alcovas, também este inaugura uma série de apropriações que se dispõem numa cadeia: Marlowe, Widmann, Lessing, Goethe, Berlioz, Gounod, Heine, Spengler, Valéry, Mann, Guimarães Rosa, Jarry...

Aqui, chegamos a um ponto essencial. Vemos aqui uma repetição, que não concerne propriamente, no seu aspecto eminentemente subjetivo, àquela que Lacan hereticamente associa à pulsão, ao inconsciente e à transferência como sendo o quarto conceito fundamental da Psicanálise. Uma repetição que se manifesta num plano cultural. Não se tratando, tão somente, da Wiederholungszwang (compulsão à repetição) teorizada por Freud em seu Jenseits des Lustprinzips (1920) que dará conta de toda a teoria lacaniana do gozo, da neurose obsessiva entre outras questões estritamente clínicas. Essa repetição que aqui observaremos no mito e em seus tratamentos interessa-nos, antes, naquilo que a categoria traz também de um aspecto que estaria na fronteira entre o sujeito e a cultura, numa remissão mútua de transformação pela mediação e elaboração. Estaríamos aí talvez mais próximos da repetição de Kierkegaard em seu ensaio que leva o mesmo nome.

Kierkegaard antecede os psicanalistas ao afirmar que na repetição não se trata de um automatismo inócuo, da resignação inibitória, da compulsão sintomática ou da estagnação da angústia. É na repetição que está a possibilidade do avanço, da novidade: “A dialética da repetição é simples, pois aquilo que se repete existiu, caso contrário, não poderia ser repetido, mas é precisamente o fato de ter existido que dá à repetição o caráter de uma novidade”. (2003, p.60)

A repetição aparece para a Psicanálise, num certo sentido, já no Freud pré-psicanalístico (1896) com a célebre constatação de que “as histéricas sofrem de reminiscências” sendo a “doença”, o sintoma, uma forma de atualização destas reminiscências. E é nesse sentido que em seus Artigos sobre Técnica, em Erinnern, Wiederholen und Durcharbeiten (1914), Freud pensará em utilizar o que é repetido em análise, concebendo-o como uma atualização do recalcado posto em cena pelo mecanismo da transferência, como a maneira de possibilitar ao analisante, apropriar-se e do que parecera anteriormente acaso, culpa, fraqueza, azar, injustiça alheia, ao deparar-se com “sem-sentido” de tais asserções. Eis onde reside o terceiro termo que intitula seu artigo: a elaboração.

Também Kierkegaard associa a repetição à reminiscência, apontando aí sua concepção clássica. “Quando os gregos diziam que todo conhecimento é reminiscência, eles entendiam por isso que tudo aquilo que foi, e quando se diz que a vida é uma repetição, isso significa que a vida que já foi se torna agora atual”, ao que ajunta: A reminiscência é a concepção pagã da vida, a repetição é a moderna”.(2003, p.61) Mas, haveria aí uma diferença fundamental entre a recordação e a repetição a ser colocada pelo filósofo dinamarquês:

A repetição e o relembrar representam o mesmo movimento, mas em sentidos opostos; pois isto de que nos lembramos é o que foi, é uma repetição a em retrospecto. Por outro lado, nós nos recordamos da verdadeira repetição indo na direção de um avanço. É por isso que, quando ela é possível, a repetição torna o homem feliz, ao passo que a recordação o torna infeliz...
( idem, p.30).

A repetição que nos interessa aqui é aquela que se processa em cada autor que toma o Fausto como tema de produção resgatando aí a ética do sinthome, sobre a qual tecemos breves comentários, mas que melhor explicitaremos no capítulo a ela dedicada. Trata-se de uma tomada de posição diversa de toda passividade perante a cultura. Como está também em Kierkegaard: “Aquele que se contenta em esperar é um frouxo, o que se contenta em relembrar é um voluptuoso, mas o que deseja a repetição, este é um homem”. (ibidem).

E quando nos debruçamos sobre o tema de Fausto como o modo de fazer-se um nome (ou fazer-se um homem) pelos seus atos, o processo da repetição nos é essencial para seu entendimento. É onde fica difícil separarmos a tríade nominação, criação biográfico-ficcional e repetição, pois o que investigamos e pretendemos demonstrar de Fausto está no modo como cada autor se apropria desta temática mítica (logo, universal) e processa a partir disso algo que se dá em nome próprio (singular).

No Fausto, está em cena a prevalência da ação, mas a produção dos Faustos, porém, não a compreendemos como o acting out, tampouco passagem ao ato, como o que Freud lembra no artigo recém-evocado: “Quanto maior a resistência, mais extensivamente a atuação ([alemão] agieren -[inglês] acting out) (repetição) substituirá o recordar” (1914, p.211). Mas, na produção de cada Fausto, está uma elaboração de algo que vai além de uma recordação biográfica nos moldes de um diário. Quando um autor se dispõe a compor seu Fausto, ali ele se faz o personagem, assim o entendemos, no sentido de que esta escritura sela um certo pacto pela produção de algo. O que faz-nos lembrar o prefácio de Repetição quando seu autor refere-se ao próprio Kierkegaard: “Um destes que não pertence mais à comunidade das pessoas ordinárias, falando, no entanto, em seu nome – um excluído, um maldito: um poeta moderno.” (2003, p. 20) E tal julgamento se justifica quando o próprio Kierkegaard, que abre mão de uma felicidade conjugal como o preço a pagar para sua realização como pensador-escritor, assim define a “missão do homem: tornar-se real, visível, entrar para a existência aqui e agora, realizar-se por si mesmo como esta possibilidade particular que se é. Tornar-se autêntico é a única maneira de permanecer autêntico, é justamente a repetição” (apud POULSEN in KIEKEGAARD, 2003 p.31).

Trata-se de uma repetição que interroga, desfaz e refaz um cânone filosófico, literário e social. Trata-se da retomada singular que cada autor faz do mito para com ele alcançar uma verdade. Se, no entender de Lacan, “Dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro é uma mentira” (LACAN, 1976-7 p.152). A repetição desse mito-cadeia a qual se ajunta um resto metonímico de singularidade a cada nova versão, também uma ponta de verdade aí se manifesta. “Sempre digo a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam palavras. É por esse impossível, inclusive, que a verdade tem a ver com o real.” (LACAN, 1973 p.509) E é somente na repetição que o impossível do real se pode apenas apresentar.

Fernando Pessoa, o autor múltiplo, ou de vários nomes, autor que certamente incluímos neste rol dos Nomes de Fausto, mostra em ato (de escrita autoral) como o mito é caro ao literário e como pelo literário-poético dele podemos extrair sua função:

O mito é o nada que é tudo
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo

No gênero literário, é sobretudo pela poética que (mais que a prosa e a narrativa) se igualam as potências da forma e do conteúdo, o gênero em que mais bem se cria, se produz ou se inventa a partir do mito, onde mais bem se trabalha com a palavra, via sacra do mítico, como pretendemos trabalhar na seção que à poesia dedicamos (capítulo 6). Na poesia, o paradoxo inverossímil denuncia contradições inerentes à verdade inefável senão pela chispa, numa fugacidade que quase nos escapa. Se o mito é o nada que é tudo, o verso é o algo que disso se produz.

Como este corpo morto de Deus, o pai, a tradição se revela ou se ilumina em cada autor, eis a influencia bloomiana, o fazer poético. Se a metáfora da castração (do intransponível, do inefável, do interdito) foi para Freud a rocha-viva, quem melhor a representa que o sol (a rocha incandescente, representação clássica), o princípio masculino e diurno da alquimia faustiana, primeira representação da divindade única, o astro-rei, astro-pai (Deus/Dies). Nisso Freud e Lacan souberam identificar a apropriação do mítico e do literário para o analítico.

Como apropriação do Nome-do-Pai (este corpo morto, vivo e desnudo) que retorna transfigurado no sintoma, na inibição, na angústia; nas produções e queixas de um sujeito em análise, dali depreendem-se construções que Freud sugestivamente chamará de Romance Familiar e que Lacan aludirá como o Mito individual do neurótico.

Nesta última, conferência na qual Lacan visa cruzar uma leitura de Freud com Lévi-Straus e suas revolucionárias concepções estruturalistas acerca do mito, o psicanalista propõe a importância que o mesmo teria na compreensão de uma verdade:

Le mythe est ce qui donne une formule discursive à quelque chose qui ne peut pás être transmis dans la définition de la vérité, puis que la définitions de la vérité ne peut s’appuyer que sur elle-même et que c’est en tant que la parole progresse qu’elle la constitue. La parole ne peut pas se saisir elle même, ni saisir le mouvement d’accès à la vérité, comme une vérité objetive.
Elle ne peut que l’exprimer – et ce, d’une façon mythique.(LACAN, 1979 p.292)

Para a Psicanálise, também existe o mito ou os mitos, sobretudo o da Horda Primeva e o de Édipo, cujas pertinências Lacan apontará do primeiro à neurose obsessiva e do segundo á histeria. Mas, cabe ao analisante escutar como o mito literariamente imprime este universal em uma singularidade sem disso se ter ciência.

Não que, conforme o “mito” que se difundiu sobre a Psicanálise, a cura adviria da decifração do próprio enigma, ainda que esta curiosidade epistemofílica tenha sido crucial como característica biográfica de seu idealizador. Mas não, a Psicanálise não seria uma cura pela hermenêutica, mas que, no entanto, passa pela advertência. Não que haja avanços por saber o sentido do que levava ao sofrimento, (até por que não é regra que sentido o tenha, mas que à problemática dos sentidos só o agrave), mas antes por saber o quanto este mesmo “sentido” é fruto de construção, de ficção. Eis a grande lição das histéricas a Freud. Se estas sofreriam de reminiscências não quer dizer que de lembranças de um fato, um ocorrido, mas antes de um desejado efeito fantasia.

A esse sujeito analítico que vive um enredo em que é o principal roteirista, ciente de sua face mítica, de produção com efeitos de verdade, mas não de uma realidade uni-versal e inevitável, caber-lhe-ia remalhar este ferro incandescente esta rocha viva para que ganhe uma forma própria (Eigengestalt) sem que se siga alienado á forma do Outro (na neurose de transferência)."

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Fonte:
PEDRO HELIODORO DE MORAES BRANCO TAVARES: “NOMES DE FAUSTO: Traços de Sinthome na Forja do Pactário”. (Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor. Orientadores: Sergio Medeiros (UFSC) / Marie-Claude Lambotte (Paris 7). Universidade Federal de Santa Catarina). Florionópolis, 2007.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Fotos antigas de cidades de Minas Gerais: SERRO - II


Mais um pouco da história visual de Serro, uma das históricas cidades de Minas Gerais, através de fotografias de 1978, como as que seguem...

SERRO - Chácara do Barão de Serro, em 1978


SERRO - Sobrado da Prefeitura Municipal, em 1978


SERRO - Casa de Pedro Lessa, em 1978


SERRO - Casa do general Carneiro, em 1978


SERRO - Capela do Rosário, em 1978


SERRO - Igreja do Bom Jesus de Matozinhos, em 1978


SERRO - Casa dos Ottoni, em 1978

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Fonte:
"Atlas dos Monumentos Históricos e Artísticos de Minas Gerais: Circuito do Diamante". - Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, [1978] 118p., il., disponível digitalmente no site da Biblioteca Digital do Estado de Minas Gerais Raymundo Nonato de Castro

Romance e Teatro em Eça de Queirós



“Eça de Queirós faz parte de escasso número de romancistas que tem a oportunidade de contemplar a adaptação teatral de muitas de suas obras. Afora os dois romances que serão analisados, A Tragédia da Rua das Flores e Os Maias, outros que também sofrem adaptação são: O Primo Basílio, O Crime do Padre Amaro, O Mandarim, A Capital!, A Relíquia e o conto “O Suave milagre”. De acordo com Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro (1989), isso se deve ao fato de que a obra queirosiana suscita fascínio que a torna capaz de resistir ao limitado espaço de um palco. Acredita-se, outrossim, que adaptação decorre da potencialidade dramática das caracterizações e dos diálogos queirosianos.

Existe, nos dois romances focalizados, e em muitas outras obras de Eça de Queirós, propensão à construção teatral. Algumas personagens agem como se achassem num palco. Segundo Henriqueta Maria Gonçalves (1998b), a dissimulação das personagens confunde-se com a teatralização ligada estruturalmente ao jogo amoroso, em que os apaixonados dramatizam para si próprios e para os demais. Dessa maneira, no encobrir para mostrar, faz-se conhecer a propensão para a teatralização manifesta nas personagens queirosianas.

O espólio queirosiano, conservado na Biblioteca Nacional de Lisboa, reserva um esboço de adaptação de Os Maias para o teatro, planejado e parcialmente realizado pelo próprio Eça. A dramatização, segundo Ernesto Guerra da Cal (1975b), está concebida para dois atos. Essa faceta queirosiana demonstra a tendência dramática presente em várias cenas das obras desse autor. Porém a experiência dramática fica apenas no esboço de algumas partes do grandioso romance. Segundo Carlos Reis (2000), Os Maias são excessivamente extenso, excessivamente complexo, na verdade, excessivamente romance para caber num palco. Entrementes, o esboço se distingue por estabelecer experiência isolada no trabalho literário do romancista português.

O rascunho, mesmo incompleto, é o projeto de dois atos que possibilita apontamentos valiosos em se tratando da analogia e vinculação entre esse rascunho de dramatização e o romance. Por ter sido deixado inacabado, muitas das cenas patéticas e cruciais do romance não são aí vislumbradas. O incesto, elemento que encaminha a intriga, não é nem mesmo entrevisto quando se chega ao fim do segundo ato.

Se até o segundo ato, como se vê, falta ainda muito para ser desenvolvido, há a previsível probabilidade da grande extensão da peça, caso Eça continuasse o projeto. Aqui se detecta o primeiro problema: a extensão conservada iria de encontro à exigência de economia e centralização conveniente à representação dramática, de outro modo, se houvesse redução das ações, a fim de satisfazer as determinações da contenção dramática, prejudicar-se-ia a tendência crítica e explicativa do panorama histórico-social, assim como das personagens que figuram no romance.

A fidelidade é o termo que melhor define a tentativa de dramatização de Os Maias. Nas cenas dos dois atos sobressaem os episódios dialogados preservados da obra original, denotando, dessa maneira, a subordinada ligação da dramatização ao romance. Dá impressão que Eça não consegue se desobrigar da constituição formal que a obra prima lhe motiva. Com efeito, os atos tracejados por Eça parecem não alcançar liberdade e não vencer a medida da dinâmica narrativa entremostrada em diferentes momentos junto ao esboço. Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro (1989) conjeturam que o plano em questão sugere, por sua incompletude e aparente abandono, o auto-reconhecimento de Eça de Queirós das próprias limitações de teatrólogo:

Não podendo dispor de uma entidade capaz de mediatizar as componentes espaciais e temporais, e de apresentar as personagens em termos carregados de intencionalidade (crítica, apreciativa, caricatural), intimamente consciente da importância e dos significados que desses componentes e dos seus peculiares tratamentos se inferem no romance; carecendo de um espaço dotado da capacidade de insinuação ideológica que o discurso narrativo consente (pela via da polifonia estilístico-ideológica inerente às relações narrador/personagens), Eça de Queirós dificilmente poderia levar a bom termo um projecto artístico como a dramatização planeada. Porque, não o esqueçamos, em Eça confluíam não apenas o dramaturgo embrionário, mas também o escritor preocupado, em elevadíssimo grau, com a plenitude e com a coerência artística das suas obras, assim como o autor desse monumento da ficção narrativa que é o romance Os Maias, horizonte de referência e marco inatingível de toda a subseqüente tentativa de dramatização.
(1989, p. 198)

Ainda em se tratando do aspecto teatral, acredita-se de grande importância mencionar o fato de Eça de Queirós ter escrito ao brasileiro Augusto Fábregas, responsável pela adaptação de O Crime do Padre Amaro para o teatro, que nunca havia pensado que esse livro fosse passível de dramatização, pois o único dos livros que sempre lhe apresentou forma de drama patético, “de fortes caracteres, de situações morais altamente comoventes” (QUEIRÓS, v. 4, 2000, p. 936) fora Os Maias. O romancista, nessa carta, também elogia o brasileiro por ter sabido extrair de O Crime do Padre Amaro movimento e atuação intensos, capazes de atrair a atenção.

Apesar da adaptação do romance O Crime do Padre Amaro para o teatro provocar a admiração do escritor português, sabe-se que a ficção queirosiana está permeada de manifestações autenticamente dramáticas – O Primo Basílio e A Tragédia da Rua das Flores são exemplos – aos quais, segundo João Pedro de Andrade (1945), faltou apenas serem pensados, desde o começo, em termos de teatro para se tornarem dramas legítimos.

Os Maias
e A Tragédia da Rua das Flores apresentam muitos elementos dramáticos. O escritor português utiliza, nessas obras, um alto grau de potencial dramático. Os arrebatamentos de Genoveva, assim como os de Maria Eduarda, são teatrais, pois buscam produzir efeito no leitor. Ambas são apresentadas como deusas de extraordinária beleza, e só depois o leitor tem conhecimento dos defeitos e torpezas. Na cena em que Maria Eduarda revela o passado a Carlos, os diálogos que aí se sucedem são de incrível dramaticidade. As páginas em que Eça de Queirós descreve a luta de Carlos consigo mesmo, a fim de se desprender daquela paixão condenável, são das mais dramáticas de toda a sua obra. Outra cena digna de ser lembrada aqui, por seu teor altamente dramático, é aquela que antecede o suicídio de Genoveva, quando se encontra com o filho na consciência de ter cometido incesto involuntário.

Esses e muitos outros excertos que existem na obra de Eça de Queirós podem ser chamados de momentos dramáticos. A prosa queirosiana é intensa, plena de dramaturgia e vigor, flexível, maleável, encantadora e plena de traços descritivos, traços capazes de criarem realidade e representação.

Por que motivo Eça de Queirós escreveu romance e não drama? Por que utiliza tema e elementos próprios da tragédia grega para caracterizar a sociedade do século XIX? Essas são algumas interrogações que se colocam antes da detecção de elementos trágicos nos romances de Eça de Queirós.

Levando-se em conta a história literária do escritor português, exceção feita ao ensaio de adaptação do romance Os Maias, chegar-se-á à conclusão de que Eça de Queirós se distancia da arte dramática. Na história literária desse escritor oitocentista sobressai, notavelmente, a ficção narrativa.

A preferência do escritor pelo gênero romanesco na sua produção é justificada, primeiro, pela possibilidade de tratamento mais ampliado de espaço e de tempo que as narrativas implicam, depois, pelas intenções críticas que proporcionam. Atente-se para as delongadas caracterizações do passado e precedentes culturais de certas personagens como Pedro da Maia, Maria Monforte, Genoveva, Pedro da Ega, Amélia, Amaro, etc., a fim de assinalar suas motivações; atente-se, também, para a predileção que os realistas naturalistas têm pelo gênero romanesco. Afigura-se dispensado de demonstração, que o modo dramático tolheria a vastidão e intensidade do universo queirosiano e também que as particularidades essenciais que caracterizam o gênero dramático poderiam não abarcar o conjunto de idéias e valores buscados pelo Realismo/naturalismo.

Diferentemente da narrativa, o drama tende à concentração de tempo e espaço, à forma dialogada, à valorização do presente, à eliminação do narrador. O estratagema discursivo do drama é diferente do estratagema da narrativa. São elucidativas as menções de Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro:

Se, por um lado, o drama parece coincidir com a narrativa no destaque que, no seu contexto, é atribuído à ação, por outro lado, outras características deixam transparecer uma estratégia discursiva radicalmente distinta da narrativa, antes ainda de se considerar a problemática da sua representação cênica; referimo-nos, por exemplo, à consabida propensão para a concentração temporal que no drama se regista, à articulação eminentemente dialógica dos seus enunciados e sobretudo (entenda-se: sobretudo em contraste com a narrativa), ao privilégio do presente em detrimento do passado, ao desvanecimento do enquadramento espacial e social da ação e à ausência de um sujeito transcendente aos fatos representados (o narrador da ficção narrativa), o que implica a inexistência de uma voz marcadamente ideológica, capaz de insinuar as ocultas dos eventos e os significados que eles encerram.
(1989, p. 184-185)

As diversidades entre o drama e o romance, apontadas acima, são alguns dos elementos que fazem oposição à escolha do modo dramático pelo escritor realista naturalista.

O Realismo é o grande período do romance como instrumento de investigação da realidade. Convém ressaltar também que o projeto de Eça das “Cenas” como forma de revelar o Portugal atrasado e decadente, posicionando-se, decisivamente, contra tal estado das coisas, revela-se como outro elemento de oposição à preterição do gênero dramático.

Sabe-se que Eça não abre mão da própria presença, mesmo que camuflada, na figura do narrador objetivo, conduzindo a perspectiva do leitor para compactuar da sua visão da sociedade portuguesa em fins do século XIX. Em Eça, o leitor depara-se com o mundo preparado pelo narrador. O narrador, em Eça, conduz a visão do leitor à coisa narrada. Apesar do narrador queirosiano contar, apesar do discurso ser dele, o narrador não aparece dizendo a coisa em seu nome; ele joga tudo para a perspectiva da personagem.

O teatro tira o autor de cena. No teatro, o espectador está diante da cena. Por não ter ninguém manipulando a perspectiva, a interpretação é mais livre do que na narrativa.

Tem-se conhecimento que, no século XX, Brecht deu feição nova à arte dramática ao fazer do drama o expediente de análise tanto social quanto histórico. O drama épico teve de, para isso, consoante Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro (1989), adotar recursos narrativos, como por exemplo, a narrativização de elementos cênicos e a distanciação. A produção literária queirosiana é anterior, pelo menos, um século, a esta nova proposição e concepção do drama. O escritor realista português, em seu tempo, parece entender ser, de fato, o romance o gênero que melhor se adequaria às suas intenções e aos propósitos do realismo e naturalismo.

A forma dramática teve grande influência e valor no conjunto do Romantismo português, entretanto, exceção feita a Almeida Garrett, no contexto português, poucos são os escritores dramáticos que se valem da originalidade e competência. É sabido que a criticidade é um dos aspectos maiores da produção literária queirosiana e, em certa medida, ela é influenciada, de maneira encoberta, pela oposição ao aspecto dramático do romantismo português. É sabido também que, não apenas Eça de Queirós, mas, de maneira geral, os realistas e naturalistas, denunciam o sentimentalismo piegas do ultra-romantismo.

Eça de Queirós assume apreciação crítica em relação à produção teatral romântica. Em As Farpas, na seção de abertura, ao traçar os contornos do debilitado quadro social e cultural português de 1871, a forma literária dramática é apresentada como fenômeno contraproducente. Eça critica a falta de originalidade, a pobreza da montagem dos espetáculos, a ausência de interesse do público, o cunho invariável das atuações, a perda da própria acepção, do significado e do propósito.

Num texto destinado especialmente ao teatro, Eça de Queirós faz apreciação demasiadamente negativa do teatro português. Para o escritor, o teatro nacional carece daquilo que ele próprio denomina “gênio dramático”, pois teima em valer-se dos despropósitos e afetação do sentimento característicos do Romantismo. Ele também considera o retardamento da realização dramática autenticamente portuguesa:

O português não tem gênio dramático, nunca teve, mesmo entre as passadas gerações literárias, hoje clássicas. A nossa literatura de teatro toda se reduz ao Frei Luís de Sousa. De resto, possuímos dois tipos de dramas, que constantemente se reproduzem: o drama sentimental e bem escrito, de belas imagens, ode dialogada, em que uma personagem lança frases soberbamente floridas, o outro retruca em períodos sonoros e melódicos – e a ação torna-se assim um tiroteio de prosas ajanotadas: o drama de efeitos, com o que se chama finais de acto, lances bruscos, um embuçado que aparece, uma mãe que se revela:
-“Ah! Céus! É ele! Matei meu filho! Oh! (QUEIRÓS, v.3, 2000, p.792)

Conforme Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro (1989), as imperfeições, mencionadas por Eça, são encontradas nas personagens de seus romances. A título de exemplificação, tem-se Ernestinho Ledesma (O Primo Basílio) e Artur Corvelo (A Capital!), porque vivem o sonho e a desilusão do jovem escritor romântico. Artur Corvelo é atingido pelos enganos culturais inseparavelmente ligados à reverência do drama sentimental. Ernestinho Ledesma é a imagem do desfalecimento da literatura romântica, especificamente da manifestação dramática.

Apesar de todas as apreciações críticas por parte de Eça de Queirós, é preciso levar em conta que elas não se aplicam à genuína arte dramática, pois também em As Farpas (QUEIRÓS, v.3, 2000, p. 795), no momento em que volta a atenção para o teatro, menciona os benefícios de produção de “um teatro normal”, como desencadeante do desenvolvimento da riqueza cultural e intelectual do país. Assim, constata-se que, não obstante as críticas, o romancista português essencialmente não se desvincula da produção dramática ou reage com apatia em relação à adaptação teatral dos seus romances. O contrário disso foi exposto anteriormente, com referência à própria tentativa de teatralização de Os Maias e à missiva a Augusto Fábregas.

Eça fez, em As Farpas, é verdade, diversas considerações, melhor dizendo, ressalvas, quanto ao gênero dramático português, mas isso não impede de reconhecer, na obra desse romancista, predeterminações dramáticas. As personagens de muitos romances queirosianos, mais aqui, especificamente, de A Tragédia da Rua das Flores e de Os Maias, comunicam pelos movimentos e comportamentos, o que faz, de alguns diálogos, autênticas cenas. De acordo com Mário Sacramento (2002), existem muitas cenas nos romances que facultam o deslocamento para o palco.

Por mais que se constatem virtualidades dramáticas em A Tragédia da Rua das Flores e em Os Maias, tais obras não são peças teatrais, não são dramas. E é desse princípio que se tem de partir. A estruturação das ações, a configuração do tempo, a caracterização das personagens, a perspectivação narrativa distinguem o romance, gênero escolhido por Eça de Queirós para expressar as diretrizes ideológicas que o guiam (REIS e MALHEIRO, 1989).

O romance é o gênero literário que se afirma desde fins da Idade Média, mas além de encontrar-se em etapa de formação e por isso poder abarcar muitos outros gêneros, atinge a mais perfeita e completa expressão na sociedade burguesa. O romance é o grande gênero do século XIX, foi aquele escolhido pelos realistas naturalistas para compor o inquérito da sociedade. Por ser um gênero investigativo, o romance realista supõe, na sua própria forma, a reflexão sobre a reflexão.

O romance é o gênero artístico da sociedade burguesa, porque exprime as oposições, divergências e desacordos da mesma. O indivíduo cindido, como Victor e Carlos, figurantes de uma sociedade que baseia todos os princípios nos aspectos econômicos, é de modo mais completo reproduzido nessa forma literária. Importante mencionar aqui que o conflito entre indivíduo e meio circundante, as denominadas antinomias radicais, serão oportunamente consideradas.

Na sociedade oitocentista, por assim dizer, na sociedade moderna, diferentemente da grega, o indivíduo não vive em equilíbrio nem vislumbra possibilidade de reconciliação com o mundo. Talvez, por isso, Eça de Queirós tenha escolhido o romance para retratar o conflito essencial da sociedade portuguesa de seu tempo, que, apesar de certas peculiaridades específicas, visa ao momento das contradições que o capitalismo provoca no Ocidente.

O romance, segundo Luckács, tem o objetivo de caracterizar a totalidade do mundo. O trágico moderno sobrevive na forma do romance, não mais, como na tragédia grega, para o expurgo dos sentimentos negativos, mas para demonstrar os modos falsos de viver, a hipocrisia, o preconceito social, o padecimento do indivíduo, enfim, os aspectos negativos de uma sociedade. O intuito é o de evidenciar a necessidade de melhorar o mundo, todavia a perspectiva é outra, é moderna, é, mesmo, revolucionária. Tanto o trágico grego quanto o moderno têm a finalidade de alertar o homem para a própria fraqueza. A perenidade da tragédia antiga e a perenidade da tragédia em Eça se devem a essa peculiaridade.

O transcendente do trágico clássico dá lugar no romance moderno à fatalidade social. O romance é o gênero utilizado para expressar esse trágico social – autoridade e miséria que destroem o homem e a cultura – e individual – aflição e aniquilamento humano. O homem, conforme enunciado, se relaciona com o destino num meio condenado pela indiferença, restando a morte e o isolamento. Apenas o romance é capaz de descrever longamente as ações e sentimentos de personagens numa transposição da vida para um plano artístico. Somente ele pode melhor expressar o trágico cristão, onde se sobressai a vontade de personagens, na maior parte extraídas da vida real, que já não agem tão iludidas. O cristianismo concedeu ao homem destaque diferente: notabilidade, especificidade, individualidade. O homem está, no trágico cristão, incorporado numa ação que o levará à circunstância infeliz. O homem trágico, por meio das próprias atitudes, atrai a manifestação da fatalidade.

Os deuses estão mortos. Ao homem, abandonado, resta enfrentar a adversidade e encontrar, nas próprias atitudes, justificativa para a desgraça. Os conflitos, a destruição, a ruína, o pavor são os determinantes do trágico moderno na literatura, são os causadores da idéia trágica representada por Eça através do gênero romanesco. O herói romanesco não mais age de olhos vendados, como o herói grego, mas de olhos descerrados, com conhecimento de que caminha em direção ao próprio aniquilamento.

O romance é, para Lukács (2000), o gênero literário que melhor evidencia o caráter peculiar da sociedade burguesa. O herói moderno, problemático e solitário, sob a dependência da própria fraqueza e debilidade, só pode ser representado, em sua plenitude, nesse gênero, porque os seus conflitos estão relacionados com o ambiente social.

O herói moderno também está susceptível ao destino, mas o mundo agora é governado pelo capital, pelo individualismo que – à maneira dos deuses – também estabelecem, de maneira implacável, a opressão da Moira a todos os seus infratores. A não aceitação do casamento de Pedro com Maria Monforte por Afonso da Maia se deve não à proibição que implique a moralidade, mas ao preconceito social. O herói romanesco é fruto os vínculos próprios do capitalismo, pois vive numa sociedade onde prevalece o capital, o individual, a produção e o mercado. O gênero romance investiga a sociedade decadente, pobre, com seus jogos de classes e conseqüentes fatalidades. O infortúnio que se lança sobre os Maias tem seu princípio neste casamento desigual. De acordo com Suely Flory (1983, p. 158) “um descendente fraco, um homem pusilânime, levado pela paixão, calca sob seus pés todos os indícios do trágico destino que a ligação com a “deusa”, em cujas veias corria sangue negreiro e assassino, traria à sua descendência”.

Intriga notável, verossimilhança, impetuosidade, aniquilamento, sofrimento, conclusão infeliz, serão os elementos encontrados nas duas obras queirosianas cotejadas e são também elencados por Aristóteles na Poética a fim de qualificar a tragédia. O gênero escolhido por Eça é outro, diferente daquele considerado pelo filósofo grego, mas os elementos permanecem. A tragédia, enquanto gênero literário, morreu, mas o trágico se faz presente noutros gêneros literários, no romance, por exemplo, porque ele é o gênero capaz de abranger todos os outros, inclusive o dramático.

No romance, todas as partes, frases, períodos e parágrafos, harmonizam-se. O gênero romanesco permite penetração psicológica, instinto dramático, criação de tipos atuando em função de determinada trama, recorte da vida real e Eça de Queirós apresenta todas essas características, abusando, inclusive, do gênero. O romance admite amplitude, autonomia, independência de movimentos no espaço e no tempo, irrealizáveis, portanto, na tragédia clássica, limitada a breve espaço e curto tempo. A técnica romanesca de composição queirosiana revela perspicaz sensibilidade, destreza dos diálogos, capacidade de captar o cômico, o divertido, o ridículo, a graça, o humor e a ironia.

Quando se pensa na grande e na sublime literatura da Antigüidade, imediatamente, vem à tona a tragédia grega. Por mais que as epopéias e comédias tenham fundamental importância, é a tragédia que discute o homem na sua profundidade e essência. Eça de Queirós, ao recorrer a elementos constitutivos e temáticos da tragédia grega, retoma o filão do trágico em obras de qualidade estética profunda. O trágico dá a Eça o estofo da tradição.

É inegável, em Eça, a vocação de romancista, de criador de caracteres e de ação. Ele é artista, acima de qualquer coisa. É o modernizador do romance português, do romance de caracteres. Os tipos criados por Eça em seus romances reproduzem a vida portuguesa do século XIX, fazendo-os perdurar além do próprio tempo. Conforme Mateus de Albuquerque (1947), Eça realiza o milagre inédito de universalizar Portugal.”

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Fonte:
LUCIANA FERREIRA LEAL: “ELEMENTOS DO TRÁGICO EM EÇA DE QUEIRÓS: A TRAGÉDIA DA RUA DAS FLORES E OS MAIAS”. (Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em Letras. Área de Conhecimento: Literatura e vida social Orientador: Dr. Odil José de Oliveira Filho). Assis, 2006.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Fotos antigas de cidades de Minas Gerais: SERRO


Um pouco da história visual de Serro, essa belíssima cidade do interior mineiro, através de fotografias publicadas em 1978, como as que seguem...

SERRO - Vista parcial, destacando-se a Capela de Santa Rita, em 1978


SERRO - Capela de Santa Rita, em 1978


SERRO - Igreja do Carmo, em 1978


SERRO - Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em 1978


SERRO - Vista Parcial da cidade, em 1978

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Fonte:
"Atlas dos Monumentos Históricos e Artísticos de Minas Gerais: Circuito do Diamante". Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, [1978] 118p., il. Biblioteca: Fundação João Pinheiro. disponível digitalmente no site da Biblioteca Digital do Estado de Minas Gerais Raymundo Nonato de Castro

Cientificismo e experimentalismo



Panorama literário e recepção critica da obra

Cientificismo e experimentalismo
“Durante a segunda metade do século XIX, a Literatura e, conseqüentemente, a concepção do romance (sobretudo no que concerne à obra Naturalista) sofreu clara influência da corrente Cientificista. Teorias do âmbito da Biologia, Química, Física, Sociologia e Filosofia estabeleceram relações, em alguns casos extremos, de aberto diálogo com a obra literária.

Podemos verificar um representativo expoente dessa tendência no ensaio de Émile Zola,
O Romance Experimental e o Experimentalismo no Teatro, de 1880, no qual o autor estabelece uma equiparação entre a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental de Claude Bernard e o que, para ele, deveria ser posto em prática na estruturação do enredo do romance: ao médico, bem como ao romancista, caberiam as tarefas de buscar, encontrar e observar as especiais condições que produzem em um corpo vivo (de um ser humano ou de uma personagem) determinado fenômeno. Para Zola e Bernard, “A Ciência Experimental não deve se preocupar com o porquê das coisas, ela explica o como, e nada mais.” Tal concepção define o Determinismo como a causa que acarreta o aparecimento dos fenômenos, expondo-o como fator absoluto nas condições de existência dos eventos naturais.

Contudo, Zola opõe-se a Bernard em um ponto crucial: ele repudia a definição do médico que afirma que o artista seria aquele que expressa, em uma obra, uma idéia ou um sentimento subjetivos; Zola conclui, ainda, que os romancistas abrem o caminho aos cientistas, empregando a
hipótese e o empirismo que preparam o estado científico no método experimental. No romance, portanto, o caminho a ser seguido seria: a) estabelecimento de uma tese; b) apresentação das personagens; c) instalação de uma “intriga” que obrigue a personagem a expor-se e reagir ante determinada situação; d) observação do comportamento da personagem; e) confirmação da hipótese inicial. Isso constituiria o Romance de Tese.

Em um diferente ensaio, “O Senso do Real”, de 1900, Zola elenca as que, para ele,
constituem as maiores virtudes que um romancista deveria apresentar: o senso de observação e apreensão do real, mostrando “o elemento real, a vida no que ela tem de verdadeiro”, e a expressão pessoal. Entretanto, este último fator não entra em conflito com o que afirmara no ensaio sobre o Romance Experimental, pois a expressão pessoal consiste no tom da escrita, na estilística, no mecanismo de originalidade, ou seja, no tratamento subjetivado da escrita sobre o mundo objetivo. A obra de arte deveria apresentar “a for a da realidade e a onipotência da expressão pessoal”. Outro elemento valorizado por Zola em seu texto é a descrição do meio, do mundo exterior, que deveria ser privilegiada na medida em que se encontre vinculada ao interior da personagem, favorecendo seu estudo. Ele elenca O Vermelho e o Negro de Stendhal para ilustrá-lo.

O Primo Basílio
costuma ser apontado pela crítica oitocentista e, inclusive, parte da mais atual como romance de tese. Machado de Assis classificou Eça de Queirós como “fiel discípulo das tendências do Sr. Zola”. Contudo, o próprio Machado apontou o que, para ele, seria uma falha no romance de 1878: sendo o autor adepto às tendências do romance naturalista, como se justificaria a intervenção do acaso, do fortuito, no desenrolar das ações?

Na apreciação crítica machadiana, encontram-se em destaque todos os elementos explanados nos dois ensaios de Zola, apesar de o artigo do autor brasileiro ser doze anos anterior ao ensaio de 1900: o Determinismo, o estilo próprio e o descritivismo, que possibilita a melhor e mais fiel possível apresentação do real. Desses três aspectos, o único que obtém elogio de Machado é o estilo: a expressão escrita de Eça parece-lhe vigorosa e brilhante
apesar de, ao final do ensaio, apresentar ressalvas quanto à linguagem empregada em detrimento ao resto.

Trata-se de diferentes concepções da obra literária, pois ao escritor brasileiro parece-
lhe contr rio s leis da Arte a a ão ser conduzida pelo que chama de “fortuito” e não pelos “caracteres e sentimentos”, como crê que seria o ideal. A intriga da chantagem das cartas, por exemplo, é algo que suscita o repudio do autor, por se tratar, em sua opinião, de um episódio medíocre em sua banalidade e ainda assim constituir o motor da ação na segunda metade do livro, em lugar de um sentimento vindo interiormente de Luísa, para quem a recuperação das cartas atende a um fim exclusivamente pragmático impedir que o marido se inteire do ocorrido. O arrependimento da personagem, podemos notar, só emerge a partir de uma possibilidade de sanção externa, e não de remorso ou questionamento interno.

Apesar de Machado depreciar em seus artigos a Escola Naturalista, curiosamente,
essa condena ão do “fortuito” est , de certo modo, de acordo com o proposto por Zola ao condenar o uso abusivo da imaginação e do acaso próprio do Romantismo no romance experimental. Lembremos ainda a tendência da obra naturalista de enfocar preferencialmente uma coletividade e não um indivíduo somente, e de optar muitas vezes por uma distensão do clímax ao longo do enredo. Em O Primo Basílio, contudo, temos momentos culminantes na troca de papéis senhora/criada e também nas mortes de Luísa e Juliana.

No romance de Eça de Queirós, encontramos, por diversas vezes, esse aspecto tão rechaçado por Machado de Assis (e visto com receio inclusive por Zola) que é a intervenção do
acaso, sobretudo do azar, da sorte que (des)favorece plenamente a personagem através de um evento cuja lógica lhe é aleatória, não dependendo de sua ação e, portanto, desprovida de causalidade. Por exemplo, a chegada de Basílio no período de ausência de Jorge é aleatória; a visita inesperada de Felicidade que permite a Juliana apoderar-se da carta de amor ao primo escrita por Luísa é uma coincidência; a chegada da carta de Basílio, com dois meses de atraso, oferecendo suporte financeiro e retomando o romance entre os primos que cai nas mãos de Jorge é um evento sem muita possibilidade de ser deduzido anteriormente pelo leitor. Mesmo quando podemos prever que certo evento possa ocorrer, caso do enfarte que fulmina Juliana, prenunciado por sua saúde debilitada e aspecto amarelado, o leitor não pode arriscar o momento em que se concretizará. Afinal, se Juliana houvesse sucumbido antes do retorno de Jorge ou após o falecimento da tia deste, época na qual esteve gravemente enferma, a sorte de Luísa seria muito diferente.

Outro dos pontos nevrálgicos da crítica machadiana ao romance eciano encontra-se no enfoque concedido ao par Luísa/Basílio. Além da ênfase nas relações físicas das personagens, que, para o escritor brasileiro, exporia o leitor a toda a sorte de sensações lascivas, o adultério entre os primos constituiria o maior exemplo do fortuito no romance, pois não seria nada mais do que um incidente vulgar, sem importância nem justificativa, dado que não o motivariam nem o amor, nem a paixão (sublime ou subalterna), nem o despeito ou sequer a perversão, posto que Luísa sequer encontraria a saciedade das
“paix es criminosas”. Isso acarreta a visão da infidelidade como determinada pela casualidade e não por fatores internos, o que permite a Machado concluir que o autor de O Primo Basílio, al m de seguir uma “Doutrina Caduca” (o Naturalismo de Zola), sequer obtém resultados satisfatórios para a mesma, pois a única tese sustentável no romance seria ineficaz.

Quando analisamos a relação entre Basílio e Luísa, é possível identificar os principais pontos que impelem a prima aos braços do amante algo oportunista (afinal, não havia trazido a Alphonsine...): a ociosidade diária, a ausência do marido, a influência dos relatos de Leopoldina, a falta de alguma atividade doméstica que a absorvesse de modo compenetrado (até mesmo suas leituras são realizadas de modo superficial e ingênuo). Contudo, se voltássemos nossa atenção ao fator das influências cientificistas, poderíamos propor outra possibilidade a ser contemplada na relação Luísa/ Basílio: o elemento da
Vontade, explanado por Schopenhauer em “A Metafísica do Amor”.

Neste ensaio, Schopenhauer apresenta o conceito de Vontade, que seria fator determinante da espécie, tendo por objetivos finais o
gozo e, de maneira na maioria das vezes totalmente inconsciente aos indivíduos, a procriação e, logo, preservação e evolução da espécie. Esta estaria internalizada e mostrar-se-ia por meio dos instintos do sujeito, impelindo-o às ações e loucuras amorosas: o amor seria a ilusão que mascara e abriga a Vontade e que, por vezes, entra em conflito com os interesses subjetivos do indivíduo.

Em
O Primo Basílio
, três elementos poderiam ajudar a estabelecer uma análise tendo em vista a teoria schopenhauriana: primeiramente, Luísa e Jorge não têm filhos, apesar do imenso anseio de ambos; em segundo lugar, Jorge adota em relação à esposa uma atitude muitas vezes paternal, repreendendo-a, determinando ele próprio como deveriam ser os cuidados da casa, contratando as empregadas, cuidando devotamente da esposa quando está enferma, prometendo-lhe levá-la para passear, dormindo com a mão entre as dela para afastar seus pesadelos, decidindo com quem Luísa deve ou não se relacionar, interditando as amizades que a seu parecer não lhe convém, e, quando ausente, incumbindo Sebastião da tarefa de vigiá-la e orientá-la dado que irrita Luísa, que considera, exasperada, o absurdo da situação. Em vários momentos, ao longo do enredo, Jorge e Sebastião discorrem entre si ou aos demais sobre a personalidade supostamente ingênua e algo tola de Luísa, destacando sua falta de sagacidade e configurando-a de maneira infantilizada. O terceiro fator, evidentemente, é o caráter lúbrico de Basílio e também da relação entre os primos.

O fato de Luísa ter-se casado com Jorge mas estar envolvida com Basílio lembra um exemplo apresentado por Schopenhauer: quando uma moça recusa um casamento vantajoso com um senhor de poucos atrativos em favor de uma união com um jovem pobre, de caráter duvidoso ainda que atraente, seriam os interesses da espécie (a Vontade, ou seja, o gozo e a procriação) sobrepujando os do indivíduo (a estabilidade financeira), ainda que de maneira inconsciente. No caso de Luísa, esta aceitou o matrimônio com Jorge, garantindo a sobrevivência de si própria e da mãe bem como a aceitação social, ainda que não estivesse propriamente enamorada do engenheiro; no entanto, tendo já obtido a estabilidade, não dispensa a busca do gozo através da união
com o primo. Retomando o que diz Schopenhauer em seu ensaio, “tudo isso [a luta pela satisfação sexual, inclusive por meio de crimes como o adultério ou o estupro] apenas para servir à espécie do modo o mais conveniente possível, em conformidade à, em toda parte, soberana vontade na Natureza mesmo se custa do indivíduo” No caso de Luísa, o preço revelar-se-á a própria vida.

É, ainda, interessante notar que Luísa, à sua maneira, dá-se conta de que sua relação com Basílio é, de certo modo, gratuita e injustificada: ela percebe que o tratamento a ela dispensado pelo primo é maçante, desrespeitoso e conclui que sacrificara sua tranquilidade a um amor incerto:

(...) Basílio não se dava ao incômodo de se constranger; usava dela. Como se a pagasse! (...) Não aceitava o menor incômodo, nem para lhe causar um contentamento.(...) E um ar de superioridade quando lhe falava! Um modo de encolher os ombros, de exclamar: - Tu não percebes nada disso! Chegava a ter palavras cruas, gestos brutais. E Luísa começou a desconfiar que Basílio não a estimava, apenas a desejava!

Luísa, apesar de quando da descoberta de Juliana cobrar impulsivamente uma fuga do amante, não vê, ao refletir mais longamente sobre o assunto, possibilidade de ter ao lado deste um futuro sólido, um matrimônio (no caso de Jorge falecer), uma relação estável como a que possui com o engenheiro. Assim, poderíamos opor sua relação conjugal com o marido, movida pelo interesse individual, e a com Basílio movida pela Vontade proposta por Schopenhauer. Notemos, ainda, que o interesse individual de Luísa está em franca associação ao ideal capitalista burguês: conforto, comodidade financeira, bem-estar social, uma posição que implique
status (afinal, ser casada constituía o estado social mais aceitável à mulher oitocentista), duas empregadas que assegurem sua ociosidade diária...

O Primo Basílio
é, sem dúvida, uma obra que suscitou inúmeras polêmicas e embates entre a crítica. No entanto, é imprescindível reconhecer a multiplicidade de ângulos por meio dos quais se torna possível perscrutar o romance: a causalidade/casualidade de Machado de Assis, o Experimentalismo, o Senso de Observação, a Expressão Pessoal e o Descritivismo valorizados por Zola, a Vontade apresentada por Schopenhauer. Todos esses conceitos atestam o caráter inovador e renovador do romance queirosiano, constituído em um momento de amplas transformações sócio-culturais, influências cientificistas e ascensão de novas e diferentes concepções da obra de arte literária.”

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Fonte:
Carolina Regina Morales: “Em busca do Paraíso vazio: a transgressão feminina em O Primo Basílio de Eça de Queirós”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Literatura Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas para obtenção do título de Mestre em Letras, Universidade de São Paulo. Orientadora: Profa. Dra. Aparecida de Fátima Bueno). São Paulo, 2010.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
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Fotos antigas da cidade do Recife (Pernambuco) - XXIV

Mais um pouco da história visual da maravilhosa cidade do Recife, capital do Estado do Pernambuco, em fotografias publicadas ao longo do século XX, como as que seguem...

RECIFE - Praça Sérgio Loreto, em 1925


RECIFE - Largo do Livramento, em 1925


RECIFE - Rua do Bom Jesus, em 1925


RECIFE - Rua Princesa Isabel, vendo-se o edifício da Câmera dos Deputados, em 1925


RECIFE - RECIFE - Rua dos Hospício, vendo-se o prédio da Escola Normal Oficial, em 1925
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Fonte:
Revista do Pernambuco, edição de 1925, disponível digitalmente no site: Domínio Público