A literatura picaresca



¿Qué mayor pobreza que andar bebiendo los vientos, echando trazas, acortando la vida y apresurando la muerte, viviendo sin gusto con aquella insaciable hambre y perpetua sed de buscar hacienda y honra. (Vicente Espinel. El pícaro Marcos de Obregón)

“Aproximar-se do conhecimento acerca da novela picaresca é entrar em contato com um dos temas mais interessantes que oferece a literatura espanhola, tanto por razões literárias quanto p
or razões de ordem histórica, social e cultural. Na segunda metade do século XVI e na primeira metade do século XVII, período em que apareceram os primeiros romances picarescos, a sociedade espanhola vivia o auge da monarquia absolutista, período do reinado de Carlos I, Felipe II, Felipe III e Felipe IV. Durante este período, desenvolve-se um processo de unificação e de centralização do poder que culmina com a queda do Reino de Granada (1492) e a expulsão dos árabes, últimos “intrusos” em território espanhol. A coroa espanhola chega ao seu apogeu, bem como as artes e as letras vivem um período priviligiado.

Entretanto, dentro da esfera social, enormes desigualdades. As camadas mais desfavorecidas ficam cada vez mais isoladas pelo abismo social criado pela impossibilidade de ascensão.

Na literatura ainda permanece a popularidade dos livros de cavalaria. Esses relatos giravam em torno de uma seqüência de aventuras heróicas do cavaleiro andante, defensor dos fracos, das donzelas e da cristandade. Protótipo do modo feudal de conquista, o cavaleiro era a garantia da preservação da sociedade estamental medieval, cujo reconhecimento social por meio do trabalho era inexistente.

Nesse contexto, o nascimento de uma tradição de textos que, de alguma forma, reage à fantasia das narrativas em voga. São pseudo-autobiografias de anti-heróis que contam suas vidas marginalizadas e sua luta pela sobrevivência. O relato em primeira pessoa dos romances picarescos coloca o leitor em contato com a experiência de um narrador personagem. Já no prólogo de
Lazaril o o convite a várias leituras, o que incita o leitor a tomar uma postura mais ativa e interpretativa diante do narrado.

Embora o texto de "Rinconete y Cortadil o" esteja em terceira pessoa, a passagem inicial da novela em que os protagonistas narram em primeira pessoa sua vida imediatamente remete o leitor da época ao gênero picaresco. Essas linhas de alguma maneira irmanam os clássicos pícaros Guzmán e Lazaril o a Rincón e a Cortado.

A
Vida de Lazaril o de Tormes y de sus fortunas y adversidades sai impressa em 1554 em Burgos, em Alcalá de Henares, em Antuérpia e em Medina del Campo. Há razões para pensar que pode ter existido uma edição anterior, por volta de 1553, porém não se conservou nenhum exemplar desta. Supõe-se que sua composição tenha ocorrido entre 1525 e 1550 partindo de alguns dados presentes no livro.

O nascimento da picaresca representa um rumo diferente para a prosa espanhola. O tema do cotidiano já aparecera na literatura, mas sempre em tom burlesco, como nas comédias; todavia, com o surgimento da picaresca, a vida cotidiana se transforma em matéria narrativa.

El Lazaril o, concebido como autobiografía miserable e irónica, perfectamente construida, se distingue por su apariencia coloquial en el manejo de materiales eruditos y tradicionales, aportando como novedad dar la voz a personajes que, en su época, no son dignos de ser escuchados ni nada tienen que decir que pudiera interesar a su auditorio. Sin embargo, de su originalidad y vanguardia, no es tomado más que el esquema, la estructura externa, su ‘realismo’, que contribuía a romper el statu quo narrativo renacentista del decoro. Los pícaros vinieron a deshacer la idealidad cabal eresca, bucólica, pastoril y cortesana, con la irrupción de ambientes y hablas coloquiales.

Lazaril o
divulgou-se prontamente e foi reimpresso muitas vezes. Sua popularidade estendeu-se além das fronteiras da Espanha, tendo sido traduzido para vários idiomas.

A narrativa picaresca apresenta como personagem central o pícaro, cujo sentido, em língua portuguesa, equivaleria a uma espécie de anti-herói ou malandro. Embora o vocábulo “pícaro” não apareça em Lazaril o uma única vez, em Guzmán de Alfarache, o termo se consolida e, em "Rinconete y Cortadil o", Cervantes já o utiliza para identificar seus personagens.

O protagonista do primeiro romance é Lázaro de Tormes, que conta a sua vida sem qualquer excepcionalidade. Nasce à beira do rio Tormes, perto de Salamanca. É filho de um moleiro ladrão que morre sem glória numa expedição militar e de uma viúva que se une a um homem que rouba para sustentá-los. Logo, a mãe de Lázaro o entrega a um cego para servir como guia e criado. Lázaro passa fome por conta da avareza do cego e tem que se valer da astúcia para sobreviver. Essa relação termina com uma brutal vingança de Lázaro, que escapa em busca de outros amos. Todo o passado de Lázaro é filtrado por seu presente, na medida em que guarda certa visão crítica dos fatos, já que seus olhos não são os mesmos da juventude e que narra os acontecimentos de uma perspectiva de aparente estabilidade,
la cumbre de la existencia, segundo ele mesmo.

A preocupação maior da trajetória de Lázaro está em matar a sua fome, uma espécie de
leit motiv do relato. Começando sem ter nada e contando apenas com sua astúcia, o pícaro ao final de sua vida consegue subir os degraus inferiores de uma classe que desfruta de certa estabilidade. Diferentemente de Rincón e Cortado, que pouco evoluem em sua trajetória picaresca na novela cervantina, Lázaro aprende com as suas desventuras, alcançando alguma “maturidade”, que inclusive lhe permite narrar sua trajetória com certo distanciamento crítico.

Mesmo sendo incluído em 1559 no
Index de livros proibidos, continuaram em voga edições de Lazaril o que chegavam do estrangeiro, e, em 1573, uma vez extraídas as partes censuradas (tratados IV e V, bem como algumas frases do restante da obra), autoriza-se sua edição, porém a mesma só retorna completa em 1834. Tal popularidade fez com que aparecesse uma continuação, também anônima, em 1555. Contudo, é necessário um intervalo de quase 50 anos para que surja uma obra a qual, seguindo a mesma poética do Lazaril o, faça com que se torne evidente o nascimento de uma nova tradição literária. Com a publicação de Guzmán de Alfarache de Mateo Alemán em 1599, que alcança enorme sucesso, fica delineado o gênero picaresco, pois a obra consolida, definitivamente, as características de forma e conteúdo presentes no Lazaril o. Isto ocorre efetivamente a partir do momento em que o leitor percebe algo em comum entre as duas obras e passa a classificá-las como narrativas do mesmo tipo ou gênero. Guzmán, como já se mencionou, é o primeiro a receber o título de pícaro, dado por seu próprio criador, denominação esta que não figura no título, mas na aprobación, o que faz com que, logo depois da sua publicação, a obra passe a ser conhecida, simplesmente, como “El pícaro”.

Sintomas talvez da mudança histórica ocorrida no decorrer dos quase 50 anos que separam a publicação das duas obras,
Guzmán de Alfarache apresenta significativas diferenças. A mais perceptível entre elas é a inserção na narrativa de numerosas digressões morais. Essas reflexões morais do narrador/personagem superam em extensão os fragmentos narrativos e tratam, em geral, da condição humana — a honra, a riqueza, a aparência etc. — com certo tom bíblico e estóico. Essa inserção talvez contribua para que haja outras diferenças: o relato se tornara mais extenso e o personagem, muito mais crítico.

A aventura de Guzmán é mais extensa que a de Lazaril o e inclui viagens mais longas. Seu destino nas galeras parece menos vantajoso, embora o pícaro aproveite esse período de trabalho forçado para refletir e escrever o seu relato. A segunda parte de
Guzmán de Alfarache é publicada em 1604, em resposta a uma edição apócrifa publicada por Mateo Luján de Sayavedra na mesma época. Também, no mesmo período, entre 1603 e 1604, começam a circular alguns manuscritos de El Buscón de Quevedo, que seria impresso mais adiante, em 1626. La Pícara Justina, de Francisco López de Úbeda, surge em 1605, e assim sucessivamente vão aparecendo relatos picarescos por toda a Espanha, confirmando o nascimento de uma importante tradição literária.

Nunca é demais destacar a importância da picaresca na formação do romance moderno ocidental. Essa importância deve ser sempre lembrada principalmente por seu caráter universal, já que o romance picaresco, além de se expandir por toda a Espanha, em sua época alcançou inclusive o resto da Europa. Na Alemanha, por exemplo, por volta de 1669, surge em Nuremberg O aventureiro Simplícimus
e A vivandeira Courasche, ambos de autoria de Hans Grimmelshausen (1621? - 1676), sendo que o segundo tem como protagonista uma pícara. Entre 1665 e 1671, na Inglaterra de Richard Head e Francis Kirkman, surge a obra The English Rogue, considerada de pouco valor literário, apoiada na poética da picaresca espanhola. No entanto, o texto que na literatura inglesa dessa época melhor se aproxima é Mol Flanders, de Daniel Defoe (1660-1731), publicado em 1772, ao lado de Coronel Jack, do mesmo autor.

Essa expansão fez com que esse tipo de relato fosse aos poucos adquirindo contornos mais definidos, de modo a constituir uma forma narrativa reconhecida como romance picaresco, que também encontrou ecos na literatura latino-americana. O primeiro romance dessa etapa mais moderna a ser apontado como pícaro foi
El periquil o Sarniento (1816), de José Joaquim Fernández de Lizardi, na literatura mexicana. A picaresca e a neopicaresca foram objetos de estudos recentes, como o de M. González, que encontra na literatura brasileira marcas da picaresca clássica espanhola.

No entanto ainda hoje há certa dificuldade em classificar prontamente se uma obra é ou não picaresca. Embora essa dificuldade seja inerente à quase qualquer tipo de catalogação de obras literárias dentro de determinados cânones, no caso do relato picaresco é preciso deter-se um pouco na questão, que inclusive a obra em estudo costuma ser incluída num certo tipo de picaresca. Desse modo, para este estudo é fundamental observar como os primeiros relatos picarescos se articulam dentro da tradição. E, apesar de poder haver muitas picarescas gravitando em torno de
Lazaril o de Tormes, a picaresca que interessa para fins deste trabalho é a que foi contemporânea a Cervantes.

Os estudos críticos, na maior parte das vezes, optaram por segmentar a picaresca, tentando de algum modo determinar com certo rigor os contornos do gênero iniciado por
Lazaril o e Guzmán. Foram surgindo inúmeras sugestões de classificação por tema, conteúdo, com digressão moral, sem digressão moral, com ou sem narração autobiográfica etc. Aqui não se pretende esmiuçar essas classificações, posto que foge do escopo deste trabalho, mas é preciso ao menos deixar claro que a picaresca conhecida por Cervantes foi sobretudo a de Lazarril o e a de Guzmán, ambas obras mencionadas pelo autor do Quixote. É muito provável que tenha tido contato também com a continuação anônima de Lazaril o de Tormes (1555) ou, ainda, com os primeiros manuscritos de El Buscón (que circulariam entre 1603 e 1604).

Mesmo em se tratando de um conjunto de obras tão pequeno aquele que Cervantes conheceu, há algumas divergências nesse campo, pois não há um acordo sobre a origem da literatura picaresca. Alguns afirmam que está na publicação de
Lazaril o de Tormes, outros, em Guzmán de Alfarache. Rico defende que a matriz do gênero picaresco não está nem em uma nem em outra, mas, sim, nasce da dialética que entre as duas, pois: En esa superposición el uno enriquecía el otro [...] en una dialética de influjos recíprocos”. Para o crítico, Guzmán tinha que primeiro seguir os passos de Lazaril o para que se tornasse evidente para os escritores e leitores da época o surgimento de uma tradição de textos, bem como se hiciera manifiesta la fórmula elemental de la novela picaresca”. Dessa forma, Rico defende para Lazaril o de Tormes e Guzmán de Alfarache o título de iniciadores do gênero picaresco.

Parker, num trabalho que causou polêmica, coloca
Lazarillo de Tormes como um precursor do gênero. Segundo ele, Lázaro não seria um pícaro, pois não é assim denominado dentro da obra. O primeiro pícaro para Parker seria Guzmán, o que gerou inúmeros debates entre os estudiosos de picaresca. Carreter dedicou um apêndice inteiro de seu trabalho Lazarillo de Tormes en la picaresca para discutir a posição de Parker:

La calidad de modelo o cabeza de género corresponde indubitablemente al “Lazaril o”, cuyo autor realizó una de lãs mayores proezas conocidas en la invención de un nuevo tipo de relato.

Para o desenvolvimento desta dissertação, entende-se, como Francisco Rico, que, do denominador comum existente entre
Lazaril o de Tormes e Guzmán de Alfarache, surge a matriz do gênero que atraiu a atenção de Cervantes.

Lázaro Carreter destaca que, curiosamente, um dos primeiros leitores de que se tem conhecimento a perceber que
Lazaril o e Guzmán pertenciam ao mesmo tipo de literatura foi Cervantes, que, no Quixote I, capítulo 22, no famoso episódio dos galeotes, faz uma importante alusão ao gênero picaresco: Es tan Bueno que mal año para Lazaril o de Tormes y para todos cuantos de aquel género se han escrito o escribieren.” Desse modo, a partir desse momento, o trabalho passa a abordar as relações existentes entre esse episódio do Quixote e a novela "Rinconete y Cortadilo".

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Fonte:
Paula Renata de Araújo: "CERVANTES E A NOVA ARTE DE NOVELAR EM "RINCONETE Y CORTADILLO". ( Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Língua Espanhola, Literaturas Espanhola e Hispanoamericana, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadora: Profa. Dra. Maria Augusta da Costa Vieira). São Paulo, 2010.

Nota
:
A imagem (Ilustração de Ricardo balaca -
Biblioteca Nacional Digital do Brasil) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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