Liberalismo e racismo

“Desde a contribuição de Florestan Fernandes em A Revolução Burguesa no Brasil, admiti-se o papel que o liberalismo desempenhou oferecendo aos membros das elites econômica, intelectual e política em processo de diferenciação, conteúdos cognitivos para conduzir a política econômica (especialmente no período da primeira república), assim como argumentos para a legitimação de seus interesses. Lilia Schwartz procura recuperar o amplo papel que o racismo científico desempenhou na mesma época, oferecendo conteúdos cognitivos para a interpretação do comportamento do elemento negro num período crítico marcado pela ebulição de revoltas e pela existência de um contingente crescente de negros livres destituídos de ocupação, assim como para a justificação da opção por determinada solução para “o problema da desmontagem do sistema escravocrata” (SCHWARCZ, 1993: 27). Deve-se considerar que as propostas de integração do negro ao processo de composição do mundo do trabalho na sociedade pós-escravista estiveram sempre alinhadas a propostas mais ou menos radicais de reforma agrária – distribuição de terras para transformar negros em colonos – e de investimentos públicos para a massificação de um sistema de ensino básico e profissionalizante.

A crítica à escravidão e a proposta de que se fundassem instituições responsáveis por uma socialização pedagógica, ou seja, a defesa tanto da inclusão do negro no campo econômico enquanto trabalhador livre quanto do investimento em sua qualificação para tanto, está presente na história brasileira pelo menos desde a primeira metade do século XVIII com propostas de reformas das relações de entre senhores e escravos objetivando um uso menos arbitrário de poder e de violência por parte dos senhores. Já na década de 1870, o visconde e marechal-de-campo Henrique Pedro Carlos de Beaurepaire-Rohan publica um livro defendendo a reforma agrária com a inclusão dos negros como colonos, assim como a fundação de escolas especializadas em educação industrial voltadas para uma educação de massa (AZEVEDO, 1987:52). Na década de 1880, André Rebouças igualmente articulava o discurso abolicionista ao apelo por uma “democracia rural” (ANDREWS, 1998: 80).

Lilia Schwartz nota o racismo e o liberalismo como um par ideológico nesse período da história brasileira. Efetivamente, se um liberalismo destituído de conteúdos éticos foi, como percebe Florestan Fernandes, a ideologia de uma elite econômica autocrática, o racismo, ao legitimar a simples exclusão do negro, cumpriu um papel não menos importante na defesa autocrática dos interesses de uma elite econômica e política indisposta a arcar com os custos de um conjunto de políticas públicas voltadas para inclusão do negro no processo de composição do mercado de trabalho livre e, sobretudo, indisposta a tomar a iniciativa de pôr um fim premeditado à instituição escravista, o que permitiria a estruturação dos projetos de reforma das relações de trabalho para a transformação do negro em trabalhador livre. Pelo contrário, a elite econômica quis extorquir da instituição escravista o seu último suspiro, insistiu nela o quanto pôde. O Império, que decretara o fim da escravidão, como ônus político dessa ação, foi substituído pela República autocrática da elite econômica em 1889. Os projetos de reforma propunham, através de um desmonte premeditado e planejado da instituição escravista, uma estratégia para desvencilhar o destino do negro do destino a escravidão. Contudo, a capacidade da elite econômica para intransigir absolutamente a defesa de seus interesses lhe permitiu prolongar ao máximo a duração da escravidão, prolongando também a cumplicidade histórica entre o destino do negro e o destino dessa instituição. Existindo de um lado as propostas de reforma tentando impor uma noção de bem público nessa importante fase do state-building brasileiro que foi o desmonte do sistema escravocrata e a composição de um mercado de trabalho livre e, e outro lado, o comportamento autocrático da elite econômica defendendo o latifúndio e tentando fazer perdurar a escravidão até quando possível, pode-se dizer que o racismo, ao legitimar a exclusão do negro e, por conseguinte, a recusa aos projetos de reforma, foi, junto com o liberalismo, uma das principais ideologias da elite econômica brasileira na segunda metade do século XIX.

Ao fim da monarquia, a defesa do interesse negro estava polarizada contra os republicanos. A monarquia, com sua capacidade de um distanciamento relativo com relação aos interesses autocráticos da elite econômica era o recipiente das expectativas reformadoras – talvez a oposição mais fundamental não seja entre abolicionismo e escravismo já que a abolição já era inevitável, mas entre, de um lado, o reformismo revolucionário das propostas de integração de negro e de reforma agrária e, de outro lado, a autocracia liberal da elite econômica –, em oposição ao republicanismo. Uma publicação do jornal A Província de São Paulo em abril de 1889, explicita bem a articulação entre os interesses autocráticos alinhados na propagando republicana e o racismo:

A luta não é entre libertos monarchistas e republicanos, é desgraçadamente entre pretos e brancos... Ou brancos pela república e negros pela monarquia... Cada gotta de sangue de branco que cahir manchará também as faces [do governo]... Já não se trata de propagando republicana; trata-se dos foros da nossa civilização, do bem estar das populações, da vida industrial do paiz, da supremacia moral da raça branca” (in ANDREWS, 1998. p. 81).

O racismo, institucionalizado em instituições de ensino e de pesquisa, foi efetivamente uma ideologia solidária ao liberalismo autocrático. Ambos possibilitavam a articulação e a legitimação dos interesses que se opunham aos projetos de reforma.

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É isso!


Fonte:
Emerson Ferreira Rocha: “Os códigos da raça: Uma perspectiva teórica sobre o racismo". ( Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, área de concentração: Cultura, Poder e Instituições, da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Jessé José Freire de Souza). Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2010 .

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

Um comentário:

  1. Confundiu Liberalismo com Conservadorismo. O Liberalismo Ecônomico não pode ser racista e nas questões sociais o país era conservador (que é o que difere normalmente o Liberal do Conservador (no caso a questão social). Associar o Liberalismo com o Racismo praticado é errôneo.

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