Depoimento de Maria Chatinha, ex-excrava


Entrevistador: Os escravos, onde nasciam?
Maria Chatinha: Os escravos nasciam nas mata, em qualquer lugar onde dava dor aí tinha o filho. (risadas).
E: Mas, a senhora sua mãe era índia...
MC: Minha mãe era índia...
E: A senhora não nasceu no mato, nasceu? (breve interrupção da gravação)
MC: Quando eu nasci eu não posso lhe dizê porque eu nasci nas mata. A minha mãe era ín­dio, os meus pais eram índio. Eu vim pra fazenda... Ela foi panhada a laço, pra vim pra fa­zenda do barão Salgado da Rocha... pra fazê chi­bata. Sabe o que é chibata?
E: Sei, sim senhora. É pra bater nos escra­vos. Não é?
MC: É pra batê nos escravos.
E: Uma outra pergunta. E seu pai, como se chamava?
MC: Meu pai, dizem, ele foi batizado José. Nã'é?
E: E sua mãe?
MC: Maria José. Minha mãe eu sei que ela chama Maria José da Rocha, porque ela ficô na mesma fazenda do... do barão Salgado da Rocha adonde eu fui criado adonde eu fui escrava. Que eu vim com três mês de nascido, porque o senhô deve comprendê, que os índios (com ênfase), pa­ra eles existe é o céu, a lua, as estrelas e as alve (entre árvore e ave). Então. Eu quando chego na fazenda a boronesa disse que não podia tê criança pagão, na fazenda. Tinha que sê batizado. Co­nhece Tremembé. Não conhece?
E: Conheço, sim senhora...
MC: Eu fui batizado naquela igreja de Se­nhor Bom Jesuis. Sabe?
E: De que tribo...
MC: Ham?!
E: ... era a mãe da senhora?
MC: A minha mãe?
E: A tribo?
MC: Ela er... Ham... Oh! Em... Eu sei que ela dizia, sempre, que ela era... Ham... da cum'é?, da Montiqueira, da... do centro do Ser­tão. Nã'é? Mais, não dizia mais nada. Que ela não falava direito. Falava muito errado! (com ênfase)
E: A sua mãe e o seu pai eram bons, eram carinhosos?
MC: A minha mãe era, meu pai, não, por­que o meu pai ficô em outra fazenda. Sabe?
E: A senhora conheceu seu pai?
MC: Conheci, assim, muito pouco. Não de vê, de conhecê, até ficá crescida, não! Porque, ele era desse índio salvágio. Nã'é? Não ficô... na fazenda. Foi, lá, deram sumiço dele. Mas a minha mãe, não. A minha mãe ficô na fazenda, traba­lhava, fazia... aquelas chibata. Com’atava (talvez quando matava) boi. Tirava aqueles couro por­que a chibata tem que sê de couro cru.
E: E havia mais alguma coisa na chibata?
MC: Não. A chibata só, tira, aquela pelea, tira aquele pêlo e tira aquelas lasca e trança, quando é para fazê o chicote, é trançado, põe um negócio por dentro, assim, o couro torcido feito uma corda, que é pra dá o cabo. Pra dá o cabo, pra podê segurá naquele cabo pra batê. Aquilo é trançado. Fica desta grossura, assim... e na ponta da chibata então, tem o negócio largo. Pra batê nos escravos. E o bacalhau é feito daqueles peda­cinhos que fica, então pega, um pedaço de... couro, põe para cá, o outro para cá, e trança aqueles couro pra fazê o bacalhau. Não ouvia dizê que tem o bacalhau?
E: Sim senhora. Agora uma outra pergunta. As crianças, dos escravos, eram batiza­das?
MC: Eram... Eram batizado.
E: Faziam também a primeira comunhão?
MC: Sim. Eu não fiz. Eu vim fazê primeira comunhão, dispois que acabou tudo (possivel­mente, a escravidão).
E: Os escravos eram casados, no civil, na Igreja?
MC: Não. Aquele tempo não havia casa­mento. (Risada da ouvinte). Aquele tempo havia juntá, muntá, (risadas).
E: Cada escravo só tinha uma mulher?
MC: Não! Ué! Os escravos tinha... as negra... as mulhé dos escravos, era mulhé dos es­cravo e era mulhé de quem o senhor quisesse, sa­be? O menos lá na fazenda do barão Salgado da Rocha era assim. Eu nunca vi casamento lá en­quanto, di idade, di três mês que eu fui pra lá c'a minha mãe... até dezoito anos e meio, eu nunca vi casamento.
E: E os patrões, da senhora, como se cha­mavam?
MC: Ele era o... a, cum'é?
E: ... o barão?...
MC: ... o barão Salgado da Rocha.
E: E a patroa?
MC: Ela chamava-si Telvina. Mas a gente não dizia, que Deus me livre se dissesse assim, ti­nha que dizê... Sinhá!
E: E as crianças? dos patrões. Brincavam com as crianças escravas?
MC: Brincava. Brincava. Tinha um menino que se dava muito com a gente. Chamava-se Alexandre. Tinha o Alvinho...
E: E os patrões, eram bons para a senhora?
MC: Que bom! se eles fossem bom eu não era toda quebrada, aí.
E: A senhora tem um dedo quebrado. Que foi isso?
MC: Foi pancada, aí. Dedo não, é a mão to­da! Aí. Isso aqui, essa mão que tá aqui, foi que­brada, que... quando a gente levantava de ma­nhã cedo, tomava café, até nuns coitezinho. Que até eu ia mandá um coité daquele pra ocês... mas aqui(lo) não é do tempo dos cativo. Era, o que gente comia, na gamela, e tomava café nos coité. Tomava café... ou com leite, ou com batata, ou com aimpim, com que fosse, que tivesse. Aí cada um, das negrinha, menina, passava mão numa cesta e subia pras campanha, pra panhá argodão, pra fazê roupa prós escravo. Pra nóis! A fazenda até, sabe cum'é que chama, chama arranca-toco.
E: E a senhora por que apanhou? Por que teve a mão quebrada?
MC: Porque nóis fomo panhá argodão e quando tocava-se a buzina, a buzina, era pó al­moço. A gente tinha que trazê aquela cesta cheia! (a tarefa). Se não trouxesse a cesta cheia, entrava de castigo. O castigo era apanhá. Nã'é? Era apanhá. E judiaria, nã'é? Aí uma menina que eu nun­ca esqueço desse nome, por nome Suzana (com ênfase). Foi na minha cesta e apanhô o meu ar­godão, botô na cesta dela e eu fiquei sem argo­dão. Aí eu cheguei na senzala, panhei uma garra­fa, que tinha aquele tolto (?) grande de garrafa que era pra fazê azeite de mamona, pra fazê azei­te de mamona, pra fazê candieiros, cê não sabe o que é?
E: Sei, pra fazer luz. Mas eu queria saber, a senhora roubou...
MC: Não...
E: ... teve...
MC: ... não...
E: A tinham roubado. A menina...
MC: A menina tirou o meu argodão e botô na cesta dela. Aí eu peguei, quebrei a garrafa e cortei ela, nã'é? (risada da ouvinte).
E: E o feitor, que fez?
MC: Aí, o feitô, pegô, ha! e hie! ... a preta velha que tomava conta da gente, a tia Tereza, que limpava, que dava banho, que tratava da gente, foi na senzala fazê queixa que a menina tava toda cortada tinha que ... fazê curativo na mão dela, nã'é. Aí ele pegô minha mão, botô assim, e quebrô. Porque se fosse assim, toda a vida, não ha­via, ladrão... (risada) ... nem marginal. Mas Deus, perdoa... na'é? (com sentimento e voz baixa).
E: O que a senhora tem na cabeça, é um si­nal. Que foi isso?
MC: Isso aqui! é porque a gente... tempo de... arrozal amadurecendo... tá com leite, nã'é, o arroz té em leite. Aqueles carocinhos, então, tem que, só, juntá muito passarinho... aí, aha, pegava os negrinho amarrava na, assim, pra tocá passarinho, nã'é, botava na roça pra toca os pas­sarinho, pra não deixá, porque juntava aquela nuvem (com ênfase) de passarinho... e eu esque­ci, aí o feitô chegô, de longe, ele viu que os passa­rinho tava ali, deu a pedrada, quebrô a cabeça, aqui, nã'é? Mas quem curou, foi a mão de Nosso Senhor Jesuis Cristo... e bicho de varejera. E tô aqui. Mas desde esta ocasião, eu fiquei com este lado... assim, esquecido, dolente, sabe cum'é? Este lado. E a vista vermelha. Depois com tempo. Vazô! Caiu, o caroço dos olho podreceu. É, e es­sa aqui, também foi lindo, ficou em nuvem. Que esta vista aqui, eu não enxergo, eu não divulgo a pessoa. Eu vejo a sombra. Na'é?
E: Os feitores eram maus?
MC: Eram. Eles eram mau porque eles ti­nha que fazê o que o senhô mandava. Nã'é?
E: E a mucamba?
MC: Não. Ela não. A mucamba, não... a tia Tereza era muito boa, ela tratava da gente bem, o... senhô... com velho, dois velho que tinha, que ficava na senzala, já não trabalhava mais, tio Joaquim, tio Zacarias, ficava na senzala, pra cozi­nhá aipim, prós porco e pra... pras criança... nã’é?
E: A senhora viu algum escravo apanhar no pelourinho ou no tronco?
MC: Não! Eles iam apanhá, mas quando le­vava pra lá, os crioulinho, não ia lá vê, não. Via só quando dizia: — O fulano apanhô (com ênfa­se) . Que o fulano apanhô, se o sicrano apanhô. Porque aquele tempo... se adonde tava as crian­ças, adonde tava as pessoa de mais velho, as criança não ficava, não.
E: Eles ficavam nus? Homens e mulheres...
MC: Ficava...
E: ... mesmo até diante das crianças?...
MC: ... não, não...
E: ... Na hora do castigo?
MC: ... Na hora do castigo... Não ficava por­que levava, tinha lugar, sabe cum'é? (Sala do tronco). O lugar, sei eu, que é feito um presídio adonde levava pra batê.
E: E os escrauos não se vingavam dos feito­res ou dos patrões?
MC: Não. Não... coitado, que podia fazê. Não podia fazê nada. Tinha que apanhá e sofrê e ficá, naquilo.
E: Por que (eles) não fugiam? (Parece ter entendido "reclamavam").
MC: Ué! Ué. Se fosse falá, aí inda apanhava mais, era mais castigado. Então não falava, apa­nhava.
E: Mas não podia fugir, não?
MC: Mas fugir! Olha. Fugir adonde? Olha, nóis era escravo em Tremembé. Em Taubaté, ti­nha uma outra fazenda do senhô que chamava-se Alexandre Padu. Mais a gente não tinha convi­vência com eles, não! Eles sabia que tinha lá, porque, a gente andava naquelas estrada, procuran­do, boi, procurando, as coisa... pela estrada.
E: Havia suicídio? Entre os escravos?
MC: Havia, porque aqueles que não... não queria mais sofrê, se matavam nã'é? Cabava. Pronto. Cabava. Graças a Deus...
E: A senhora viu alguns escravos no tronco?
MC: Eu, só vi, um. Porque eu vou dizê... Só vi um ... Porque, eu era muito levada, sabe?
E: Quantas horas de trabalho, havia?
MC: Ué, era as mesma hora. A gente traba­lhava das seis, seis hora se tomava café, aí, da­quela seis hora, subia, todo mundo pró trabalho, quem era de capina ia capina, quem era do tem­po da colheita de café, que em maio, junho, ju­lho, agosto, setembro; setembro termina, a colheita.
E: Iam para a roça e levavam o almoço já pronto?
MC: Levavam... os crioulinho levava, cada um leva a sua panela de amuchila.
E: O que eles comiam?
MC: Ué!? Comia. Era arroz, feijão, carne, e comia só comida assim.
E: Trabalhava até que horas?
MC: Trabalhava até as seis horas.
E: E o jantar?
MC: Jantava quando chegava de lá e jantava.
E: E depois do jantar?
MC: Aí ia reza, ia dormi.
E: A que horas iam dormir?
MC: A um horário assim depois de que ia rezá, cada um procurava o seuzinho, e ia dormi.
E: O casal de escrava tinha a sua casa pró­pria ou pelo menos um quarto?
MC: Tinha casa própria, não. Não tinha casa própria, era uma senzala de um lado e do outro. Tinha repartição das crianças (com ênfase).
E: Mas o casal?
MC: E os casar ficavam pra lá.
E: Marido e mulher não ficavam no mesmo quarto?
MC: Não... Não... Ficavam pra lá.
E: Homens e mulheres separados?
MC: He... agora...
E: Como era o quarto da senzala?
MC: Ué!... era um quarto, assim inteiro, nã'é? Um quarto grande e dividido, nã'é? Com aquelas tarimba. Na...
E: E quando fazia frio. Os escravos tinham bons agasalhos?
MC: Iiii... Agasalho tinha porque era feito tudo na fazenda.
E: Quantos anos a senhora tem?
MC: Olha, eu tenho. Cento e oito... Hoje é quanto do meis?
E: Hoje é dezenove de julho (1981).
MC: Tenho cento e oito e quatro... e três meis e vinte e nove dia...


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Fonte:
Mário José Maestri Filho. “Depoimentos de ex-escravos brasileiros. Editora Ícone. São Paulo, 1988, p. 43 a 53.

Nota:
A imagem inserida no texto nao se inclui na referida obra.

4 comentários:

  1. obrigado por partilhares

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  2. Muito forte esse depoimento que nos fortaleçe a consciência pra resistir hoje a todo tipo de opressão e preconceitos.

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