As críticas de Gould ao gene-centrismo de Dawkins

"Gould (2002) sistematiza as críticas ao selecionismo gênico em uma série de sete argumentos. O primeiro é relativo à distinção entre replicadores e interagentes, conceitos que a partir de sua definição por Hull servem de base para a discussão sobre ‘níveis de seleção’. Gould afirma que esta distinção é útil, porém foi tratada pelos selecionistas gênicos, em especial por Williams e Dawkins, como uma dualidade na qual os replicadores seriam os únicos agentes ativos e funcionais, e os interagentes sendo meros repositórios passivos dos primeiros. Porém, este seria um uso indevido, pois a proposta de Hull para a análise da seleção natural envolve tanto replicadores como interagentes em “um processo no qual extinção e proliferação diferencial de interagentes causa a perpetuação diferencial dos replicadores que os produzem” (HULL, 1980, p. 318).

O segundo argumento aponta que a concepção de ‘replicação fiel’ como o critério central da visão gene-cêntrica é um equívoco. Dawkins, assim como Williams, defende que os organismos não podem ser considerados como a unidade fundamental de seleção devido à desagregação que sofrem durante o processo de reprodução. Os genes, ao contrário, teriam a propriedade de transmitirem cópias fiéis às gerações seguintes, podendo assim ser considerados como unidades de seleção. Para Dawkins, o organismo seria uma unidade de função e o gene a única unidade de seleção. Gould critica os critérios de fidelidade, imortalidade e prioridade ancestral, estes teriam sido escolhidos por sua equivalência com virtudes culturais e não por serem critérios necessários para o debate sobre níveis de seleção. Além disto, Dawkins estaria confundindo o fato dos genes terem surgido anteriormente aos organismos na historia biológica com a suposição de que isto levaria à dominação atual dos primeiros sobre os posteriores, ou seja, para Gould, anterioridade histórica não é o mesmo que dominação atual. Para Gould, o conceito de emergência desmonta a argumentação de Dawkins, visto que o surgimento de unidades de mais alto nível envolve a manifestação de propriedades emergentes, que não podem ser reduzidas às interações entre as unidades de mais baixo nível que deram origem a esta. E assim: “Unidades de mais alto nível se tornam, por definição, um agente independente em seu próprio direito, e não um “escravo” passivo de seus constituintes controladores”. (GOULD, 2002, p. 618).

O terceiro argumento é uma rejeição da replicação como critério de agência, considerando que é um erro identificar a medição de um atributo hereditário como equivalente ao mecanismo que produz sucesso reprodutivo diferencial. Este argumento reflete uma das críticas mais comuns à teoria gene-cêntrica, confundir ’contabilidade’ [bookkeeping] com causalidade. Para Gould, esta confusão é tão comum devido a ‘persistência’ e ‘replicação’ serem critérios necessários para a definição de uma entidade biológica como um indivíduo que pode evoluir. Esta seria uma falácia que surge quando não se distingue entre condições necessárias e condições suficientes. As condições de hereditariedade e persistência são necessárias para um indivíduo ser considerado uma entidade evolutiva, mas não são suficientes, sendo necessário que este também atue de forma coesa e direta com o ambiente. Os genes são claros representantes das duas primeiras condições, mas, em geral, não manifestam este último critério. Até aqui a argumentação de Gould é a que encontramos em vários artigos, tanto dele como de outros críticos do gene-centrismo, mas ele agrega outro ponto, aplicando alguns conceitos tal como propostos por Darwin. Assim, aplica a metáfora da seleção natural agindo como uma peneira sobre diversos indivíduos de uma dada população. Esta peneira ao ser sacudida pelo ambiente manteria alguns indivíduos e perderia outros. A permanência dependeria de propriedades emergentes dos indivíduos, que passariam as mesmas às futuras gerações, as quais, por sua vez, seriam submetidas ao mesmo processo. Os indivíduos não precisariam gerar cópias fiéis de si mesmos, mas somente ser capazes de aumentar a representatividade de sua contribuição hereditária nas próximas gerações quando considerados em relação a outros indivíduos. Darwin percebia os organismos individuais como unidades de seleção e, por desconhecer os mecanismos de herança genética, aceitava a possibilidade de herança por mistura de características. Este fato leva Gould a concluir que o conceito de replicação fiel não é necessário para a concepção de seleção natural. Darwin entendia o critério de agência como relativo a unidades de seleção que interagem com o ambiente e se reproduzem diferencialmente por conta desta interação. Segundo Gould, este é o critério que devemos considerar como válido.

O quarto argumento afirma que o critério próprio para identificação de unidades de seleção é a interação, o que não está representado na teoria gene-cêntrica. Esta afirmação é o ponto a partida para Gould (2002, p. 623) definir pluri-produção [plurifaction] como: “o aumento relativo da representação de um indivíduo na hereditariedade das gerações suficientes” e caracterizar “seleção como ocorrendo quando a pluri-produção resulta de uma interação causal entre traços de um indivíduo evolutivo (uma unidade de seleção) e o ambiente de forma que isto aumente o sucesso reprodutivo diferencial do indivíduo”.

O quinto argumento é relativo à incoerência interna do selecionismo gênico, sendo desenvolvido a partir da análise textual de documentos relevantes desta teoria. Gould inicia sua argumentação retomando a proposta de Aristóteles na qual a causalidade se apresentava em quatro aspectos: causa material, causa eficiente, causa formal e causa final. Esta classificação não é comum hoje em dia, mas podemos considerar que a definição de ‘causa’ na ciência atual é análoga ao que era a causa eficiente aristotélica. Obviamente as bases materiais e formais continuam a ser consideradas relevantes, porém não como causas, mas como condições ou restrições operacionais. O conceito de causa final foi abandonado . Nenhum dos argumentos seria sustentável, não representando muito mais do que um jogo de linguagem. Os selecionistas gênicos não reconheceriam que a existência de propriedades emergentes destrói sua teoria, somente admitiriam que as propriedades emergentes pudessem eventualmente significar um problema, mas buscariam a solução em analogias que evitassem a questão. Além disso, sua aplicação do critério ceteris paribus ocorreria de maneira indevida. Este critério é válido para um uso heurístico e como uma ferramenta experimental quando efetivamente se podem manter vários fatores constantes enquanto apenas um se altera. A realidade biológica dos níveis de seleção não se enquadra nestes usos, assim, o que os selecionistas gênicos têm feito é extrapolar o domínio ao tentar aplicar esta ferramenta para defender o gene como unidade de seleção. após a revolução cartesiana. O erro do selecionismo gênico seria considerar os genes como causas eficientes da seleção natural, quando estes seriam, mais corretamente, condições materiais ou formais. Os selecionistas gênicos teriam confundido a importância que os genes efetivamente têm como causa material com a proposta de que os mesmos seriam as causas eficientes. Para Gould (2002, p. 627): “Genes representam o produto, não o agente – o material de continuidade, não a causa do resultado”. Portanto, os argumentos dos selecionistas gênicos a favor do gene como unidade de seleção estariam baseados em dois pontos: negar a existência de propriedades emergentes dos organismos e esquivar-se atrás do conceito de ceteris paribus
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O sexto argumento retoma a relação indevida entre contabilidade [bookkeeping] e causalidade a partir de outros três pontos. O primeiro é o reducionismo presente na tradição científica ocidental. Dawkins adotaria esta busca por explicar os fenômenos de larga escala a partir de seus elementos constituintes, como é o caso quando assume a necessidade de explicar todo o mundo biológico a partir de sua estrutura básica: o gene. O segundo ponto está ligado ao próprio sucesso da Síntese Moderna e da genética de populações, que conduz ao que Gould considera uma falácia: supor que o sucesso prático de uma matéria equivale a uma explicação das estruturas da natureza. O terceiro ponto, o mais importante, pelo qual se confunde ‘contabilidade’ e causalidade está conectado ao motivo que levou os pesquisadores a escolherem o gene como unidade de registro de mudanças evolutivas: a assimetria intrínseca do fluxo causal em hierarquias de inclusão. O mundo biológico está organizado em uma hierarquia direcional, ou seja, na qual o fluxo de influência entre os diversos níveis é relevante. As mudanças nos níveis mais baixos desta hierarquia podem ou não causar efeitos nos níveis mais altos (causação ascendente), mas toda a mudança em um nível mais alto altera algo nos níveis mais baixos (causação descendente). Isto posto, torna-se claro o motivo pelo qual o gene foi escolhido como a melhor unidade de registro: genes são as unidades que mantêm o registro mais amplo de todas as mudanças evolutivas, não importando em que nível as mesmas ocorram. Com isto, Gould pretende afastar os motivos alegados pelos selecionistas gênicos para a escolha do gene como a unidade fundamental. O gene não teria sido escolhido por ser o elemento básico (a falácia reducionista), nem por ser o agente causal (a falácia selecionista), nem por ser replicador fiel, mas por ser boa testemunha das mudanças evolutivas.

O sétimo e último argumento de Gould busca mostrar que mesmo os selecionistas gênicos têm alterado sua posição de defesa estrita do gene como unidade de seleção para uma posição convencionalista, o que seria um indicativo da incoerência da teoria."

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É isso!

Fonte:
Maria Rita Spina Bueno: “Níveis de Seleção: uma avaliação a partir da teoria do “gene egoísta”. (Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Osvaldo Pessoa Jr). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

2 comentários:

  1. Ainda contra o gene-centrismo de Dawkins recomendo a leitura do livro "Les imposteurs de la génétique" de Bertran Jordan (não sei se há traduções para português).

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  2. OLá, "Anonimo",
    Grato pela dica.

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