Um breve histórico da sífilis

“No século XV, os europeus se depararam com o surgimento de doenças que, até aquele momento, não existiam no Ocidente, ou se existiam não eram reconhecidas pelos médicos; a exemplo da varíola, do sarampo e da varicela. Ao final deste século, mais uma enfermidade desconhecida surgiu de forma epidêmica na Europa, fazendo milhares de vítimas. Esta estranha e grave doença manifestava-se primeiramente nos órgãos sexuais, na forma de feridas, pústulas e corrimentos.

O advento e a rapidez com que se propagava, suscitou proposições diversas para explicar a origem e as causas de mais este flagelo que se abatia sobre a sociedade européia, já abalada com o fantasma permanente da peste. Para a Igreja, a causa da enfermidade era o afrouxamento dos valores morais, fruto do pecado, era considerada um castigo mandado por Deus. Outros a viram como punição aos europeus pela espoliação da América. Já os astrólogos a explicavam como influência das estrelas e dos planetas. E havia, ainda, os que argumentavam ser a enfermidade o resultado de uma mistura de doenças pré-existentes.

Ainda no século XV, essa doença ganharia o nome que até hoje conserva - sífilis – derivado de um poema intitulado Syphilis sive morbus gallicus (Sífilis ou doença francesa), da autoria de Francastoro, figura iminente do Renascimento italiano. Geógrafo, físico, patologista, e poeta, Francastoro foi o primeiro a sustentar o caráter contagioso da doença, pressuposto que viria a se confirmar, na segunda metade do século XIX, com a teoria bacteriana. Também defendia que a sífilis era originária da própria Europa e não do continente americano como outros acreditavam.

A idéia de que as doenças desconhecidas que apareceram na Europa após o descobrimento do novo mundo fossem trazidas pelos que transitavam entre este e o velho mundo era comum neste período. No caso da sífilis, embora sua causa tenha sido identificada, sua origem geográfica é até hoje bastante discutida. A hipótese mais aceita, no entanto, é a de que ela tenha se manifestado primeiramente na Itália, mais precisamente, quando o Exército francês de Carlos VIII invadiu esse país. Daí, a doença teria se espalhado largamente pelos demais países europeus.

Esta hipótese já existia no século XV, mas os italianos reagiram a ela. Para eles, os soldados franceses foram os responsáveis pela disseminação do mal gálico na Itália, e por isso mesmo a doença recebera este nome. Já os franceses culparam os italianos, alegando que seus soldados teriam sido contaminados pelas mulheres italianas com quem mantiveram relações sexuais no período que o Exército francês atacou a cidade de Nápoles. Por isso mesmo, denominavam a sífilis de mal-italiano. Franceses e italianos recusavam, assim, o estigma de serem os propagadores da moléstia.

No entanto, a discussão a respeito da origem da doença não ficou restrita aos italianos e aos franceses. Desde o seu surgimento no continente europeu, a sífilis foi uma das doenças que mais causou polêmicas. Para alguns a primeira epidemia de sífilis teria surgido entre os marinheiros que acompanhavam Colombo no regresso da primeira viagem ao Novo Mundo, e somente mais tarde teria atingido italianos e franceses. Essa versão era contestada por aqueles que defendiam que a sífilis já existia na Europa, bem antes da viagem de Colombo à América. Outros, ainda, argumentavam que a sífilis grassava simultaneamente nos dois continentes, embora a doença tivesse se manifestado na Europa de forma mais virulenta. Muitos acreditavam que a doença fazia vítimas neste continente desde a Idade Média. Doentes de lepra, por exemplo, teriam na verdade sofrido de sífilis, mal diagnosticada pelos médicos. Hipótese factível, pois, de fato, as semelhanças nas formas de manifestação das duas moléstias, no que respeita às lesões de pele, podem ter ajudado a confundir os diagnósticos de ambas.

Inicialmente, a sífilis se manifesta na pele com lesões externas, afetando principalmente aos órgãos sexuais. Depois de dois ou três dias da contaminação, conforme relatos médicos, trazia ao corpo lesões cutâneas e dores nas juntas. Alguns meses depois, a doença afetava a garganta, os lábios ou os olhos. Na última etapa, podia-se observar afecções ósseas.

No século XVI, a terapêutica adotada para tratamento dessa moléstia, ainda praticamente desconhecida, se deu à base de purgativos, e somente mais tarde, o mercúrio foi adotado como um dos medicamentos mais usuais para a sua cura. Geralmente, os médicos prescreviam fricções de mercúrio misturado com banha de porco e ervas aromáticas, como a mirra e o enxofre. Outra terapêutica empregada era o guáiaco, planta medicinal oriunda da América, e que foi trazida à Europa pelos viajantes. Acreditava-se, que o seu uso contínuo, seguido de jejuns prolongados, era capaz de curar a enfermidade.

Paralelamente, em algumas localidades, como a cidade de Veneza, as municipalidades, preocupadas em conter o avanço da sífilis, ordenaram que os ulcerados sifilíticos fossem tratados no Hospital dos Incuráveis. Também, em Ferrara, Afonso I autorizou que donativos fossem pedidos à comunidade para a edificação de um hospital especializado no tratamento da doença. Seu caráter epidêmico, na Europa do início dos tempos modernos, levou a medicina a tomar uma nova postura com relação às doenças, exigindo que os médicos construíssem um quadro nosológico das enfermidades e se utilizassem mais da observação de modo a precisar diagnósticos e determinar terapêuticas mais eficazes.

Nos séculos XVI e XVII, embora a doença tenha continuado a se alastrar pelos países europeus, nada de efetivo foi feito para combatê-la. Foi somente no século XIX, especialmente em sua segunda metade, que a sífilis passou a integrar as preocupações das autoridades médico-sanitárias como uma grande ameaça à saúde pública. Constata-se, neste momento, um alarmante crescimento nos casos da doença, assim como de outras enfermidades venéreas, sobretudo na Europa, desencadeando estudos sobre as suas formas de manifestação, terapêuticas e profilaxia.

Este fato deveu-se, em larga medida, aos desdobramentos da revolução industrial. O encurtamento das distâncias entre as cidades européias, e mesmo entre os continentes, com o advento do navio a vapor e dos trens, ao mesmo tempo em que propiciava a expansão do capitalismo europeu, permitiu migrações massivas e o contato entre as populações de diferentes regiões do mundo. Estes contatos favoreceram a circulação de vetores de graves enfermidades, que passaram a atingir com mais intensidade, embora não exclusivamente, os grandes centros urbanos industriais, onde se concentravam os maiores contingentes populacionais. Neste quadro, as cidades européias, sobretudo as que passavam por uma intensa industrialização, tornaram-se um campo fértil para a difusão de doenças. Mais e mais moléstias infecciosas aparecem e as grandes epidemias voltam a assombrar a Europa, representadas, sobretudo, pela cólera e a febre amarela.

A situação era mais grave em Londres e Paris, cidades industriais mais importantes da Europa, que experimentavam um vertiginoso aumento populacional e sofriam um crescimento urbano desordenado. Grande parte destas populações, especialmente os trabalhadores fabris, sobrevivia precariamente. Superexplorados, cumprindo jornadas de trabalho estafantes, mal alimentados, morando em cortiços onde se amontoavam, sem quaisquer condições de higiene e sem assistência dos poderes públicos, eram vítimas fáceis das doenças.

Esse quadro social, pela ameaça que representava para o sistema, alarmou imediatamente reformadores de todos os matizes, principalmente os médicos. Em suas análises e diagnósticos da situação, os pobres acabaram sendo visto como um duplo perigo: ou porque podiam transmitir doenças, ou porque se constituíssem em focos de resistência que poderiam provocar sublevações, comprometendo a produção capitalista.

É este o contexto em que ganha corpo o incremento de políticas sanitárias de controle, combate e erradicação desses males, filhos da modernidade. Nesse período, com base em relatórios e estatísticas, as autoridades médico-sanitárias constataram que a sífilis se expandia rapidamente, representando uma ameaça. Nesse sentido, o saber médico passou a pesquisar mais sobre a doença com o propósito de verificar as formas de transmissão e as medidas a serem tomadas para o seu combate.

Na segunda metade do século XIX, as pesquisas de Louis Pasteur constataram que as moléstias estavam relacionadas à ação de pequenos seres vivos presentes no organismo.

Esta descoberta revolucionou a medicina, permitindo o rompimento com a visão miasmática e higienista e possibilitando novas intervenções terapêuticas. No que respeita a sífilis, confirmou o seu caráter contagioso e, levou os médicos a elaborarem um conjunto de medidas profiláticas de combate à doença, como, também, a apontarem as causas mais prováveis do seu contágio. Na opinião destes especialistas, a sífilis podia ser transmitida pelo uso comum de copos e talheres, ou mesmo através de um beijo. Contudo, defendiam que o principal meio de contaminação da doença era através das relações sexuais. Essa revelação levou o sexo a ser vigiado e os comportamentos sexuais normatizados. O sexo seguro, para usar uma expressão corrente no nosso tempo pós-emergência da Aids, passou a ser prescrito como a melhor forma de se evitar o contágio da sífilis. Aos homens e mulheres, principalmente os pertencentes às classes mais abastadas, foi recomendada uma educação sexual capaz de convencê-los que o sexo deveria se dar apenas no interior do casamento, visando a procriação, o que lhes garantiria a saúde pessoal, bem como de sua prole.

Neste contexto, a regulamentação da prostituição passou a ser apontada pelos médicos e autoridades sanitárias como a melhor profilaxia contra a doença. Alguns países, como a França, chegaram a adotá-la, contudo, o tempo mostrou que essa medida não era suficiente para contornar o problema.

No que diz respeito ao tratamento da doença, entre várias terapêuticas tentadas pelos médicos, era prescrito, principalmente, o uso do mercúrio, apontado pelos especialistas, neste período, como o melhor remédio contra a enfermidade. Contudo, além de provocar efeitos colaterais desagradáveis aos pacientes, o mercúrio não promovia a cura definitiva. Os sintomas iniciais desapareciam, mas a doença voltava com outros sintomas diferentes.

De um modo geral, os procedimentos relativos ao diagnóstico, tratamento e profilaxia da sífilis, no continente europeu, somente começariam a mudar no início do século XX, quando a ciência conseguiu identificar o germe causador da doença, e quando ficou certificado que a penicilina, descoberta na década de quarenta, era o melhor tratamento para a sua cura.”


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Fonte:
ELSE DIAS DE ARAÚJO CAVALCANTE: "A SÍFILIS EM CUIABÁ: saber médico, profilaxia e discurso moral - 1870-1890". (Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em História, do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT. Orientadora: Profª Drª Lylia da Silva Guedes Galetti). Cuiabá - MT, 2003.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

Um comentário:

  1. """"breve histórico"""""" ahahaha, porém muito bom!

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